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694 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70

os desvios às regras comuns, que considera mais consentâneos com a autonomia particular que importa reconhecer às organizações correspondentes às diferentes confissões.
A segunda falha seria suprida pelos termos genéricos em que a matéria virá a ser disciplinada pela futura lei e pela referência directa ao problema do reconhecimento das confissões não católicas, cuja resolução constituiria pressuposto indispensável ao regular funcionamento das normas administrativas aplicáveis às associações religiosas correspondentes.
Nenhum dos fins propostos atinge, segundo a intenção expressa no projecto, "as normais particulares que vigoram para a igreja católica".

2. Indagação prévia imposta pela apreciação, tanto da conveniência legislativa, como da oportunidade política do diploma. - A necessidade de a Câmara reflectir sobre a exposição introdutória, do projecto, para que possa pronunciar-se com suficiente conhecimento de causa acerca da conveniência legislativa e da oportunidade política das soluções formuladas, exige uma recapitulação muito atenta da evolução do princípio da liberdade de crenças e de cultos dentro da legislação nacional. Só a leitura desse capítulo da história das instituições jurídicas nacionais permitirá concretizar os ir convenientes que realmente podem advir da variedade dos diplomas em vigor sobre a matéria, precisar as dificiências do direito vigente no que toca às corporações religiosas não católicas e apurar os prejuízos que delas decorrem, seja para os particulares, seja para o Estado.
O balanço rigoroso do conjunto destes factores reveste importância fundamental para o confronto a que esta Câmara se não pode furtar com os inconvenientes que forçosamente acarreta a revisão pública de um tema tão espinhoso e delicado como sempre foi e continua a ser a questão religiosa. "De todas", como diria Hintze Ribeiro dirigindo-se ao rei D. Carlos, "a que mais afecta as consciências e exalta os espíritos."
"Lamentável questão esta", acrescenta o relatório do Decreto de 18 de Abril de 1901, "que, distendendo-se pelo Bafe, e entoando na vida íntima das famílias, leva a convicção à intransigência, o sentimento à paixão, a crença ao fanatismo, quando a tempo se não provê de remédio com sereno critério e ponderada razão. Lamentável questão, sobretudo no momento em que mais preciso se torna que todos, afastando dissidências que conduzem à inimizade e à desordem, ponham o melhor do seu trabalho e esforço em resolver outros problemas, que tanto interessam à economia da Nação."
"Matéria... extremamente delicada", escrever-se-ia meio século mais tarde no parecer da Câmara sobre as alterações propostas em 1951 à Constituição Política de 1933 1 "como tudo quanto vai tocar com sentimentos profundos e questões de fé."
O breve capítulo da história do direito português, que a indagação proposta visa ressuscitar, terá ainda o mérito de oferecer a perspectiva exacta do princípio da liberdade de crenças dentro da problemática geral da religião na vida, tanto dos indivíduos como da colectividade nacional. Não deixará de se extrair da natural articulação lógica das matérias discriminadas, bem como da instrutiva evolução que as ideias, os costumes e as leis sofreram ao longo do tempo, algumas conclusões seguras sobre o mais conveniente enquadramento jurídico do tema versado no projecto.

CAPITULO I

Evolução legislativa do princípio da liberdade religiosa

3. A época liberal. Primeiros sintomas da reacção dos tempos contra a intolerância religiosa do período anterior Constituição de 1822. - É no artigo 25.° da Constituição Política de 1822 que se encontra a primeira fresta aberta na muralha legislativa e costumeira que durante séculos tentara preservar, com o escudo da intolerância, a unidade religiosa, a pureza da fé, e, com elas, a unidade moral e política da Nação 2.
Depois de afirmar que "a religião da Nação Portuguesa é a católica apostólica romana" 3, essa disposição acrescentava, num segundo período, o seguinte:

Permite-se, contudo, aos estrangeiros o exercício particular de seus respectivos cultos.

O facto de a disposição se referir sòmente aos estrangeiros e de, mesmo quanto a estes, a liberdade concedida se restringir ao culto particular, privado ou doméstico deixa desde logo entrever qual fosse a situação de nacionais e estrangeiros no período anterior ao liberalismo e qual continuaria a ser, no plano legal, o regime mantido com relação aos cidadãos portugueses.
Sabe-se, com efeito, que a época anterior fora de franca negação da liberdade do pensamento, principalmente em matéria de religião, e, por conseguinte, de completa intolerância na prática dos cultos 4, a despeito do incêndio que as labaredas do protestantismo haviam ateado em vastas regiões da Europa, e cias fórmulas de compromisso (ou de tolerância) a que já nos fins do século XVI se chegara em algumas das nações mais dilaceradas pelas lutas da Reforma 5.
E são igualmente conhecidos os excessos de vária ordem a que recorreram, de acordo com o espírito e

1 Pareceres da Câmara Corporativa, V Legislatura, 1951, I, p. 149.
2 Durante muitos séculos a Razão de Estado imperou, de facto, como razão justificativa da pureza e unidade da fé e da consequente perseguição de todas as heresias, em obediência ao conhecido brocando legitimista de que num Estado deve haver sempre "um só rei, uma só lei e uma só fé". Esta aliança entre o Sacerdócio e o Império teve um dos seus momentos culminantes, de mais concreta e visível realização, na coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III, no ano 800. Vide Prof. Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, I, 1947, p. 71.
3 Embora nascida de uma revolução cujas origens são bastante conhecidas, a Constituição de 1822 tinha o seu articulado precedido dia invocação expressa da "Santíssima e Indivisível Trindade", e incluía no texto do artigo 19.°, à cabeça dos principais deveres do cidadão português, o de venerar a religião.
4 A doutrina da intolerância, no mundo cristão, remonta praticamente ao imperador Constantino, com a perseguição oficial dos que eram considerados hereges, e encontra a sua primeira consagração legislativa no Código Teodosiano (XVI, V). Note-se, no entanto, que na intolerância religiosa radicada nos tempos posteriores se distinguia muitas vezes entre os pagãos e hebreus, de um lado (para os quais havia certa tolerância), e, do outro, os apóstatas e os hereges, estes sujeitos ao odium theologicum das autoridades e dos crentes.
A primeira voz, isolada, a bradar pela tolerância terá sido a de Marsílio de Pádua. Sobre as linhas fundamentais do pensamento do antigo reitor da Universidade de Paris, veja-se Prof. Cabral de Moncada, ob. cit. e vol. cit., pp. 85 e segs.
5 Jemolo, Liberta dei culti, na Enciclopédia del Diritto, n.° 6.