28 DE ABRIL BE 1971 699
religiosos do comum da população, a Lei da Separação deu lugar a um vasto movimento de protesto de certos sectores de opinião e gerou sobretudo uma atmosfera de progressiva deterioração das relações entre as autoridades civis e a hierarquia eclesiástica.
Entre as reacções conhecidas dos prelados, salientarem-se a Pastoral Colectiva do Episcopado, de 24 de Dezembro de 1910, o protesto colectivo de 5 de Maio de 1911 contra a Lei da Separação 391 e um ofício do Episcopado Português ao Presidente da República, com data de 15 d, Março de 1913.
Como o Governo acusou o toque 40 e perseverou em executar as medidas decretadas 41, a aplicação prática da Lei da Separação deu origem a frequentes atritos, que mais toldaram ainda, pela qualidade das pessoas que as viações oficiais atingiram 42, o carregado ambiente social, político e religioso em que o País iria viver o resto do primeiro quartel do novo século.
A tensão existente entre a Igreja e o Estado (que culminara com a, publicação da encíclica Jandundum in Lusitânia, na qual Pio X condena vigorosamente o diploma da separação) só começa realmente a afrouxar quando, após o triunfo tia revolução de 5 de Dezembro de 1917, o Governo de Sidónio Pais, depois de ter procurado restabelecer relações diplomáticas com a Santa Sé, procedeu a uma primeira e corajosa revisão da Lei da Separação 43. Pondo exactamente o dedo na parte mais ulcerada do organismo religioso, quer no que respeitara ao espírito da legislação em vigor, quer no que tocava ao foco principal de irritação das relações entre o clero e o poder civil, Moura Pinto (o Ministro da Justiça de então) não hesitou em denunciar no relatório do Decreto n.º 3856, de 22 de Fevereiro de 1918, o carácter sectário da Lei da Separação, ao mesmo tempo que introduziu modificações substanciais no regime jurídico das comissões encarregadas do culto 44. Permitiu-se aos fiéis a constituição das corporações (religiosas) encarregadas da sustentação do culto público, atribuiu-se personalidade jurídica a estas associações, mediante uma fórmula muito abreviada de simples reconhecimento normativo 45, e aboliu-se a limitação legal que impedia os ministros da religião de fazerem parte dos respectivos organismos dirigentes (artigo 1.°).
Assim se libertaram as associações religiosas da tutela e inspecção da administração civil.
39 O tom polémico deste protesto deixa claramente transparecer a agitação que o diploma de 1911 desencadeou desde logo no País.
"Foi vibrado o golpe!", dizia-se na introdução do documento. "Realizou-se a previsão... Realizou-se? Não: foi excedida. O facto passou além da expectativa. A calamidade superou o receio. Receava-se a dureza, veio a atrocidade; receava-se a suspeição, veio a tirania; receava-se o cercear de garantias e direitos, veio a humilhação vilipendiosa; receava-se a grave e penosa redução dos necessários recursos materiais, veio a confiscação; receava-se enfim, a injustiça, veio com ela o sarcasmo."
40 No relatório da proposta que o Ministro da Justiça, António Macieira, apresentou ao Presidente da República (Manuel de Arriaga), para que fosse imposta a interdição de residência ao patriarca de Lisboa, ao arcebispo-bispo da Guarda e ao governador do bispado do Porto, lê-se esta elucidativa passagem: "... o procedimento dos prelados contra o Decreto com força de lei de 20 de Abril de 1911, que a Constituição expressamente reconheceu, assume um carácter de acintosa e perversa má vontade, simplesmente e propositadamente perturbadora da ordem pública, cujos processos não tardam a tocar as raias dos delitos contra as instituições".
41 Três anos volvidos sobre a data da publicação da lei, tendo à vista sobretudo as insuperáveis dificuldades que em muitos casos suscitara a criação das chamadas comissões cultuais, ainda Afonso Costa, o principal impulsionador da renovação legislativa levada a cabo nos anos de 1910 e 1911, escrevia no prefácio à edição Ia Lei da Separação, anotada por Carlos de Oliveira (Porto, 1914), o seguinte comentário: "A Lei da Separação consagra e defende eficazmente, contra todas as tentativa da reacção, actuais ou futuras, semelhantes às já adoptadas no passado ou novamente ensaiadas, este superior património dos povos verdadeiramente progressivos - a liberdade de consciência com a correspondente liberdade de cultos".
Não são necessárias, porém, grandes cogitações sobre o articulado da lei, através das várias soluções que foi possível respigar do seu texto, para dar a ideia da distância apreciável que neste caso medeia entre as palavras do autor e a realidade da obra por ele levada a cabo. Concebida sob a invocação apaixonada da liberdade de consciência, a lei negava aos católicos uma série de liberdades fundamentais, desde a faculdade de testar e de doar como melhor lhes aprouvesse até a possibilidade de se associarem na realização das finalidades superiores da sua crença. Ciosa da autoridade do Estado, ela desrespeitava em larga medida a autoridade da Igreja e das associações religiosas em pontos de disciplina livremente aceites pelos particulares.
42 Basta recordar que foram proibidos de residir durante dois anos nos respectivos distritos, por aplicação das sanções previstas nos artigos 146.° e 147.°, os seguintes titulares da hierarquia eclesiástica: o arcebispo-bispo da Guarda (Decreto de 24 de Novembro de 1911); o patriarca de Lisboa, o governador do bispado do Porto, e o arcebispo-bispo da Guarda, quanto ao distrito de Castelo Branco (Decreto de 28 de Outubro de 1911) ; o bispo do Algarve (Decreto de 6 de Janeiro de 1912); o bispo de Viseu e o governador do bispado de Coimbra (Decreto de 14 de Janeiro de 1912); o bispo de Lamego e os arcebispos de Braga e Portalegre (Decretos de 12 de Fevereiro de 1912): o arcebispo de Évora (Decreto de 30 de Março de 1912); o bispo de Bragança, não só no seu distrito, como no de Coimbra (Decreto de 16 de Fevereiro de 1912); o vigário capitular do bispado de Angra do Heroísmo (Decreto de 24 de Agosto de 1912).
Antes da Lei da Separação, haviam sido já destituídos das suas funções os bispos do Porto e de Beja (Decretos de 7 de Março e de 18 de Abril de 1911). Cf. Carlos de Oliveira, ob. cit. p. 121.
43 As medidas de aministia concedidas através da Lei n.° 114, de 22 de Fevereiro de 1914, aos autores de delitos ou transgressões da Lei da Separação não trouxeram consigo nenhuma contribuição séria para o apaziguamento dos espíritos, visto terem persistido as causas anteriores de perturbação.
44 Vale a pena transcrever a seguinte passagem do preâmbulo do diploma: "Mas, se é certo que as leis de ordem geral devem reflectir, na mais larga medida, as aspirações do país a que se destinam, nem sempre os legisladores conseguem furtar-se ao império dos seus sentimentos e das suas paixões, de modo a manterem-se serenos e lúcidos intérpretes da vontade da Nação. Assim aconteceu com a Lei da Separação. Contendo princípios universalmente aceites, como garantia do pensamento e da consciência, medidas indispensáveis à segurança da ordem e dos interesses do Estado, ela viu em demasia o Estado em função de ordem e de interesses, e, impropriamente, misturou o regime em contendas de crença, como se a República em 5 de Outubro fundasse uma religião que tivesse um credo hostil a qualquer outra já existente.
E se a intolerância política ou religiosa por parte dos cidadãos constitui o mais deplorável espectáculo que pode oferecer um país livre e moderno, a intolerância do Estado nem sequer se compreende, degradando a sua alta missão de equilíbrio e imparcialidade."
45 Não poderiam ser mais expressivos os termos em que no preâmbulo do decreto se condena a acção das corporações cultuais: "... os organismos conhecidos por 'cultuais' faliram deploràvelmente, formando-se apenas por artifício algumas dezenas deles, focos de perturbação e corpos estranhos dentro do agregado católico, compostos na sua maioria de pessoas indiferentes, se não hostis, à crença que se propunham manter e assegurar.
Esta aberração, por igual odiosa à sinceridade dos crentes e à liberdade do pensamento inteligente e honesto, não impediu que a actividade religiosa tivesse na maior parte das paróquias as suas regulares e usuais manifestações, ficando pois a haver no País uma lei com preceitos mortos que um partido político, por capricho, teimava em não remover para o seu fúnebre destino, afirmando aos sectaristas simples que vivem da ilusão das palavras que tais preceitos viviam, se executavam e eram basilares."
46 "Foi o Decreto n.° 3586, de 22 de Fevereiro de 1918", anota o Prof. Marcello Caetano (Manual, 8.ª ed., I p. 373), "que permitiu novamente a constituição de associações de fiéis de qualquer confissão religiosa com o fim principal da sustentação do culto público, as quais adquiriam personalidade jurídica pela mera participação dos seus estatutos e dos seus componentes à autoridade administrativa. Assim se subtraíram as associações religiosas ao âmbito da Administração."