702 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.° 70
título X, consagrado às relações do Estado com a Igreja Católica e ao regime dos cultos.
Já antes, aliás, da assinatura da Concordata, a Lei n.° 1910, de 23 de Maio de 1935, modificara a redacção do § 3.° do artigo 43.° da Constituição, abolindo a declaração de neutralidade religiosa do ensino ministrado pelo Estado e substituindo-a pela afirmação expressa de que entre os fins essenciais visados pelo ensino oficial se conta a formação "de todas as virtudes morais e cívicas" e de que estas virtudes morais devera, ser "orientadas" pelos "princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País".
Também no Código Administrativo de 1940 se inseriu um título especialmente consagrado às "associações religiosas e sua actividade beneficente ou de assistência" que reflecte e completa em vários pontos (sobretudo com os aditamentos e modificações do Decreto-Lei n.° 31 386, de 14 de Julho de 1941) as disposições do texto concordatário.
Em 1951, com a entrada em vigor da Lei n.° 2048, de 11 do mês de Junho, a Constituição passa a reproduzir alguns dos preceitos mais importantes da Concordata 59, quando traça as linhas mestras do regime jurídico a que fica sujeita a Igreja Católica, ao mesmo tempo que expressamente considera o Catolicismo como a religião da Nação Portuguesa.
Além disso, no manifesto intuito de realçar a posição da religião católica em face das demais confissões religiosas, inverte-se a ordem dos preceitos contidos na antiga versão dos artigos 45.° e 46.° e substitui-se o sistema do reconhecimento normativo da personalidade jurídica pelo reconhecimento por concessão, quanto às associações constituídas no seio destas outras confissões.
Outra fora, diga-se de passagem, a orientação alvitrada no parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de revisão constitucional elaborada pelo Governo 60.
Sem contestar a posição especial a que tem direito a Igreja Católica, mas partindo da ideia de que "a liberdade de cultos deve ser igual para todos" e receando que a afirmação da existência de uma religião da Nação pudesse ser tida como uma porta aberta para o regresso ao sistema da religião oficial, com o cortejo de todos os seus inconvenientes práticos, a Câmara sugeriu nessa altura se mantivesse a ordem dos preceitos então vigentes, principiando pela proclamação da liberdade de cultos em termos que aproveitassem, igualmente a todas as religiões e dando ao artigo imediato a seguinte redacção:
O Estado reconhece a posição especial da Igreja Católica, em que professa a maioria dos portugueses. É garantido à Igreja o livre exercício da sua autoridade, com a faculdade de, na esfera da sua competência, exercer os actos do seu poder de ordem e jurisdição sem qualquer impedimento. 0 Estado mantém em relação à Igreja Católica o regime de separação, sem prejuízo das relações diplomáticas entoe a Santa Se e Portugal, com recíproca representação, e das concordatas e acordos aplicáveis na esfera do Padroado ou de outros em que sejam ou venham ser reguladas matérias de interesse comum.
A sugestão da Câmara não vingou na Assembleia, tendo esta perfilhado os textos propostos pela Comissão de Legislação e Redacção 61, bastante mais próximos da orientação do Governo 62. Mas é a antiga doutrina da Câmara que, em boa parte, renasce agora na proposta de lei n.° 14/X, contendo as alterações sugeridas pelo Governo para a próxima revisão constitucional.
Aí se regressa, de facto, à ordem primitiva dos textos 63. Primeiro, a proclamação da liberdade de culto e de organização das confissões religiosas, em termos que aproveitam igualmente a todos os credos (artigo 45.°), nada se dizendo, porém, sobre o reconhecimento da personalidade jurídica das associações religiosas. Só depois se define, em termos bastante mais concisos do que anteriormente 64, a posição especial da religião católica através do recurso a duas notas fundamentais: uma, expressa no reconhecimento do catolicismo como religião tradicional 65 da Nação Portuguesa; outra, traduzida no reconhecimento constitucional da personalidade jurídica da Igreja Católica.
59 São eles, concretamente, o reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja Católica (artigo I da Concordata), a liberdade de organização das pessoas colectivas eclesiásticas e o reconhecimento normativo da personalidade jurídica destas (artigo III), a manutenção das relações amigáveis sob a forma de recíproca representação diplomática (artigo I, segundo período) e o respeito dos acordos bilaterais em que sejam ou venham a ser regulados assuntos compreendidos na esfera do Padroado do Oriente ou matérias de interesse comum (doutrina que não se encontra expressamente formulada no texto da Concordata, embora caiba, sem dúvida, no seu espírito).
60 Pareceres da Câmara Corporativa, V Legislatura, 1951, I, especialmente pp. 147 a segs.
61 Diário das Sessões, 1950-1951, pp. 842 e 878.
62 Anote-se, porém, que chegou ainda a ser apresentada na Assembleia uma proposta do Deputado Mendes do Amaral, no sentido de ser mantida a redacção anterior dos artigos 45.° e 46.º da Constituição (Diário das Sessões, 1950-1951, p. 733).
No pólo oposto desta, registe-se a apresentação da proposta (subscrita pelos Deputados Carlos Moreira, Ribeiro Casais, Sousa Campos, Elísio Pimenta, Vaz Monteiro e Nunes Teixeira) que visava a restauração do princípio de união moral e de independência económica e administrativa entre a Igreja e o Estado.
63 A razão invocada no breve preâmbulo da proposta para justificar, tanto a alteração feita na epígrafe do título X, como a inversão estabelecida na ordem dos preceitos, é a de a matéria não poder deixar de ser encarada sob a perspectiva da liberdade religiosa, "de acordo com os princípios constitucionais e em conformidade com a doutrina dimanada do último concílio da Igreja Católica".
64 A maior concisão do texto proposto resulta de se ter eliminado a referência à manutenção das relações diplomáticas com a Santa Sé e de se ter relegado para o domínio da legislação ordinária a questão da aquisição da personalidade jurídica por parte das associações ou organizações erectas de harmonia com o direito canónico.
65 A fórmula religião tradicional constitui, em certo sentido, um plus cm face da afirmação, de raiz puramente estatística, sugerida pela Câmara em 23 de Fevereiro de 1951 ("Igreja... em que professa a maioria dos portugueses). Mas é, no mesmo plano conceituai, um minus perante a tese categórica do texto vigente.
Esta envolve uma proposição doutrinária, de sentido transcendente, inspirada nos permanentes destinos do ser moral que é a comunidade nacional, enquanto a primeira fórmula exprime um puro juízo histórico, de carácter mais positivo que programático.
"A Nação Portuguesa constitui hoje", diz-se no relatório da proposta de alteração constitucional, "a unidade de muitas culturas e vai-se constituindo todos os dias através do livre encontro das diversas raças e formas de viver que existem no seu seio."
Na declaração do Episcopado, de 13 de Novembro de 1970, sobre a liberdade religiosa, sustenta-se, pelo contrário, que a presença da Igreja tanto na metrópole como no ultramar, "não se deve medir em termos puramente estatísticos ou de simples representatividade numérica, isto é, só porque são maioria os católicos entre nós. Há-de medir-se em termos de civilização e de história, prolongada por mais de oito séculos de vida nacional. Nem todos os portugueses aceitam explicitamente a fé cristã. Mas todos aceitamos uma certa concepção de vida residualmente cristã, que nos define como povo".
A Câmara Corporativa teve há pouco ensejo de se pronunciar sobre este ponto, preferindo por maioria a seguinte fórmula intermédia: "E reconhecida a posição especial da religião católica entre as várias crenças professadas pelos portugueses."