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706 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70

de religião 74. Como certo é ainda que a parte final do artigo 46.° da Constituição não afirma o reconhecimento normativo da personalidade jurídica das associações não católicas: apenas consigna a possibilidade desse reconhecimento, dentro, por conseguinte, do regime próprio do reconhecimento por concessão.
Há, porém, duas considerações de peso que não podem deixar de ser tomadas em linha de conta no balanço que incumbe à Câmara levar a cabo.
A primeira é que a Constituição se não limita a garantir, ao lado da liberdade de crenças e de práticas religiosas (artigo 8.°, n.° 3.°), a liberdade de culto das confissões religiosas não católicas que actuam em território português; ela assegura também, no artigo 46.°, a liberdade de organização destas confissões.
Esta liberdade de organização abrangerá certamente, não apenas os núcleos de pessoas ou as massas de bens. que estruturam a própria religião ou confissão (constituídos pelos ministros, sacerdotes ou membros da organização confessional e pelos bens afectos ao culto), mas também as associações ou institutos que nesta se integram, embora estranhos à sue estrutura interna. E constituiria grave incoerência legislativa a solução de a estas últimas associações poder ser reconhecida personalidade jurídica, nos termos da parte final do artigo 46.° da Constituição, " igual possibilidade ser sistematicamente recusada quanto às primeiras, embora de maneira indirecta.
Em segundo lugar, desde que o reconhecimento da personalidade das associações religiosas não católicas está em última instância dependente do facto de a sua constituição se ter processado "de harmonia com as normas de hierarquia e disciplina da religião a que pertencerem", constituiria verdadeiro farisaismo jurídico 75 a atitude de recusar por sistema esse reconhecimento, com o fundamento de que as autoridades civis ignoram as normas de hierarquia e disciplina da respectiva religião, por não ser ao Estadão que compete reconhecer a personalidade jurídica destas religiões ou confissões religiosas.

18. O recurso às normas reguladoras do direito da associação. - E como sair então do círculo vicioso em que parece debater-se, no plano do direito constituído, o reconhecimento da personalidade jurídica das associações religiosas não católicas? Como se há-de harmonizar a liberdade de organização assegurada pelo artigo 40.° da Constituição vigente com a ilação que a Auditoria Administrativa do Porto e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo fundadamente extraíram do disposto nos artigos 449.° e 450.° do Código Administrativo?
Uma vez assente que a Constituição, segundo a melhor interpretação do artigo 46.°, garante a possibilidade do reconhecimento da personalidade jurídica às confissões religiosas não católicas, o processo aplicável a esse reconhecimento, na falta de disposições especiais que o regulem, não pode deixar de ser o fixado no direito comum a propósito da liberdade de associação 76.
Ora, o regime jurídico da liberdade de associação, solenemente garantida no n.° 14.° do artigo 8.° da Constituição, está hoje definido no Decreto-Lei n.° 39 660, de 20 de Maio de 1954 e nos artigos 157.° e seguintes do Código Civil.
Dos preceitos do diploma de 1954 salienta-se aquele (artigo 2.°) que sujeita ao sistema do reconhecimento especifico, ou por concessão, a constituição e a existência jurídica das associações não subordinadas a lei ou regime especial.
Quanto a estas associações sujeitas ao direito comum, a sua constituição e a sua existência jurídica dependem da aprovação dos respectivos estatutos pelo governo civil do distrito da respectiva sede, ou pelo Ministro do Interior, quando o âmbito da actividade da associação exceda a área de um distrito.
Será este, por conseguinte, enquanto não houver legislação especial adequada, o regime aplicável ao reconhecimento da personalidade jurídica das confissões religiosas não católicas.
Há, todavia, no processo do reconhecimento deste tipo muito especial de associações ou corporações, um ponto importantíssimo a considerar, que exige mais demorada reflexão.
Sempre que se trata de formar uma sociedade comercial, ou mesmo de constituir uma pessoa colectiva de qualquer dos tipos previstos na lei civil, bastará, em princípio, para dar corpo ao novo ente jurídico, a declaração de vontade emitida pelos particulares no acto de constituição da sociedade ou da associação, ou no acto de instituição da fundação, e nos respectivos estatutos. Com análoga simplicidade se poderá processar, nesse aspecto, a criação de qualquer associação religiosa, integrada na Igreja Católica ou em qualquer outra confissão.
Quando, porém, o que está em causa, perante a autoridade civil, é o reconhecimento de uma confissão religiosa,

74 Contra o argumento referido no texto não faltará, por certo, quem obtempere que a liberdade de crenças e de práticas religiosas se não esgota naturalmente em simples atitudes do foro interno, nem sequer em puros actos externes de carácter individual.
Toda a confissão religiosa assenta sobre determinada concepção do Mundo e se projecta nas relações de cada indivíduo com o seu semelhante, nenhuma delas deixando de inscrever nos seus actos de culto as manifestações colectivas de adoração da divindade criadora. Este cunho acentuadamente comunitário da crença em Deus postula o reconhecimento da liberdade de associação, como um dos corolários mais importantes da liberdade religiosa.
Dir-se-á, em contrário, que os núcleos de pessoas irmanadas na mesma fé podem perfeitamente funcionar, no terreno especifico do direito, como meras associações (lícitas) de facto, com um regime jurídico semelhante ao das associações não reconhecidas ou das comissões especiais previstas e reguladas nos artigos 195.° e seguintes do Código Civil, não sendo forçoso que a lei lhes reconheça personalidade jurídica autónoma, distinta da que compete a cada um dos seus membros.
São, porém, sobejamente conhecidas as vantagens de vária ordem que a instituição das pessoas colectivas, pela duração da sua existência e pela natureza dos seus meios de acção, desfruta sobre a existência precária, dispersa e isolada das pessoas singulares, na prossecução permanente de interesses de carácter colectivo. Cf., além da obra clássica de Ferrara (Le persone giuridiche, incluída no Trattato de Vassali), Manuel de Andrade Teoria geral da relação jurídica, I, 1960, n.° 11.
75 De pecado análogo disseram alguns padres conciliares ser acusada a hierarquia católica, quando apelava para a liberdade religiosa nos países em que o catolicismo está em minoria, ao mesmo tempo que silenciava ou tentava iludir o mesmo princípio nos Estados de acentuada maioria católica.
76 Nesse sentido, o Prof. Marcello Caetano, ob. e vol. cite. p. 374, e Dr. Oliveira Lírio, est cit., p. 224.
Haverá possivelmente quem entenda que a aplicação das regras do direito comum ao reconhecimento da personalidade jurídica das confissões não católicas resulta da aplicação directa do texto do § único, que o artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 31 386, de 14 de Julho de 1941, aditou ao artigo 449.° do Código Administrativo. Diz-se aí que as associações e organizações das igrejas não consideradas associações religiosas ficam sujeitas ao direito comum, quando pertençam a confissões diferentes da católica.
É, porém, muito duvidosa a validade deste entendimento.
As organizações das igrejas não são h mesma coisa que as próprias igrejas.
Depois, o confronto com a redacção dos artigos III e IV da Concordata sugere fortemente a ideia de que o Decreto-Lei n.° 31 386 usou o termo organizações, não na acepção de confissões religiosas, mas no sentido de associações, provavelmente de associações que não tenham como fim principal a sustentação do culto.