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710 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70

a importância do factor religioso na vida das pessoas, das instituições e da colectividade em geral.
Muito distanciado deste se situou o pensamento com que o Estado concebeu e arquitectou, em 1911, todo o articulado da Lei da Separação.
Não foi, como se viu, a ideia de assegurar o livre exercício do culto ou a livre organização das confissões que determinou a proclamação da liberdade religiosa nesse diploma. O pensamento sobre o qual parece assentar, no fundo, quase todo o dispositivo da lei é o de que a religião constituía uma forma de opressão do povo, não passando a Igreja Católica de uma força reaccionária que à Revolução cumpria combater, para facilitar o progresso do País 88.
A esta concepção positivista, presa aos ideais burgueses da Revolução, repugnava naturalmente que fossem imobilizados pelas congregações religiosas muitos braços de homens e mulheres, que poderiam ter ocupação mais produtiva para a colectividade, ou que estivessem afectados à sustentação do culto valiosos bens susceptíveis de uma aplicação muito mais consentânea com as necessidades económicas do País.
Assim se explica que a lei se mostrasse realmente bastante mais interessada em despojar a Igreja dos seu bens, em impedir a criação dias ordens ou associações religiosas, e até em dificultar a propagação da fé, do que empenhada em assegurar & liberdade religiosa num território como o da metrópole, onde, constituindo os fiéis da Igreja de Roma mais de 90 por cento da população, não faltava à religião católica, sem embargo dos abusos cometidos por um ou outro membro do clero, a liberdade essencial à difusão e aperfeiçoamento dos seus princípios 89.

24. Objecto da liberdade religiosa. - Outro foi já o sentido com que a Constituição de 1933 proclamou, e manteve após a celebração da Concordata de 1940, a liberdade de crenças e práticas religiosas (artigo 8.°, n.° 3.°). Pretendeu-se que as pessoas estivessem realmente imunes de qualquer coacção na procura das suas relações com a divindade, por se conhecer o valor fundamental que a liberdade de consciência assume para as crenças religiosas.
O Estado deixou de hostilizar a Igreja Católica e passou a reconhecer o valor singular que a religião tem na vida dos indivíduos e da própria colectividade.
Não quer isto dizer, porém, que o Estado tenha caído no polo oposto ao do laicismo, a ponto de se poder afirmar, com Origone 90, que o direito de liberdade religiosa tenha por objecto o bem jurídico da fé.
A questão do objecto da liberdade religiosa (não confundir com o seu conteúdo) tem sido discutida, com algum interesse prático, principalmente a propósito do ateiem activo 91.
O ateísmo activo, como o próprio nome indica, consiste na propaganda da ideia de que Deus mão existe e do que são, consequentemente, falsas todas as doutrinas que partem da crença oposta.
Abrangerá a liberdade religiosa, que as leis constitucionais e ordinárias garantem aos cidadãos, o próprio ateísmo activo?
Para quem entenda que a liberdade religiosa tem por fim a protecção da fé dos indivíduos, o ateísmo activo parece ser uma atitude ilícita, na medida em que constitui um atentado à (religiosidade dos crentes e a todos os valores em que ela se consubstancia 92 e 93.
Para quem, pelo contrário, considere a liberdade religiosa como a faculdade de as pessoas, sem coacções nem pressões de qualquer natureza, embora dentro dos limites impostos por lei, afirmarem a sua personalidade em matéria de religião 94, o ateísmo constitui uma das formas possíveis de 'expressão do pensamento, e a difusão da ideia (inclusivamente na educação ministrada aos filhos) 95 um corolário lógico da liberdade que a lei concede aos indivíduos.

25. A liberdade religiosa e a simples tolerância relativa a algumas confissões. - O princípio da liberdade religiosa, nos termos abertos em que o recomenda a Declaração Conciliar de 7 de Dezembro de 1965, distingue-se do regime da simples tolerância, em que passaram a viver algumas confissões após o adoento do liberalismo, sobretudo nos Estados de tipo confessional.
Era de simples tolerância o regime em que viveram entre nós no território metropolitano, durante o período que medeia entre a revolução liberal e a entrada em vigor da Lei da Separação, as confissões não católicas 96.

88 E bastante representativo da mentalidade da época o livro de Eurico de Seabra, A Igreja, as Congregações e a República, 1914: cf., especialmente, o capítulo X "O ensino da Igreja", que constitui, da primeira à última página, um libelo cerrado contra a Igreja Católica e a influência deletéria que ela exercia no País.
89 A liberdade religiosa significava, no fundo, para as concepções políticas vigentes na época, a emancipação do espírito humano em face de todos os preconceitos dogmáticos de carácter confessional. Os heréticos, os cismáticos, os apóstatas, os cépticos, os livres-pensadores, os espríts forts eram, como justamente observa Ruffini (La liberta religiosa, I, Storia del Videa, 1901, p. 1), os campeões e os mártires da liberdade religiosa, tomada nesse sentido amplo e ao mesmo tempo unilateral, sendo seus equivalentes, em certa medida, o iluminismo, o deísmo, o racionalismo, o voltaireanismo, o naturalismo e o materialismo.
A liberdade religosa é, para esta noção de cariz positivista, não um fim (o de garantir uma igualdade de direitos entre crentes e não crentes), mas apenas o meio de conseguir a eliminação das bases em que assentavam as crenças religiosas.
90 Apud. G. Catalano, Il diritto di liberta religiosa, 1957, pp. 4 e segs.
91 Há em Itália, onde as questões do objecto e do conteúdo do direito da liberdade religiosa têm sido largamente debatidas entre os autores, uma vasta e rica bibliografia sobre o nosso tema. Boa parte dessa literatura encontra-se citada nas monografias de Fedele, Ruffini, Jemolo e Catalano, fontes a que este parecer recorre a cada passo. Em Espanha, a questão do objecto da liberdade religiosa foi também posta frontalmente, com toda a acuidade, por Joaquim Lopez de Prado, "Derecho humano y cristiano a la libertad religiosa", na Rev. esp. der. can., 21, especialmente pp. 248 e segs.
92 Atentado particularmente grave, acrescentam alguns autores, quando a propaganda do ateísmo se exerce junto das pessoas jovens. Há, como se sabe, inúmeros casos de conversão: pessoas declaradamente incrédulas que são iluminadas pela fé a partir de certo momento da sua vida. Essas conversões raras vezes, porém, se dão nas pessoas cuja fé foi logo destruída na sua infância.
93 Dir-se-á ser esta, aparentemente, a orientação consagrada pela Constituição dos Estados Unidos, ao definir o direito de liberdade religiosa como "o direito de cada um adorar a Deus segundo as indicações da própria consciência".
94 Para estes autores, as normas relativas à liberdade religiosa visam tutelar, não o bem jurídico da religião, mas uma das possíveis manifestações da liberdade humana: G. Catalano, ob. cit., p. 5.
Nesse sentido, W. Bigiavi ("Ateísmo", no Novíssimo Digesto Italiano), que refuta a tese de Origone no próprio plano do direito italiano constituído, citando, na mesma linha de orientação, entre outros, Balladore-Pallieri, professor da Universidade Católica de Milão.
95 O problema tem sido bastante discutido na jurisprudência italiana, a propósito da questão de saber a quem deve o tribunal preferir, na entrega dos filhos menores, quando um dos pais desavindos é crente e o outro ateu. Vide infra, n.° 30 e ainda W. Bigiavi, est. cit., n.° 1.
96 De simples tolerância era também o regime aplicável às confissões não católicas em Itália até à entrada em vigor da Constituição de 1947, sobretudo por força da legislação publicada em 1929 e 1930.
Cf., a propósito, Sinopoli, "La legge sui culti ammeasi in rapporto alla costituzione e alla legge di pubblica sicurezza", na Riv. trim. dir. pubblico, 1952, pp. 344 e segs.