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714 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70

Este dever jurídico contraposto à liberdade de crenças pode revestir vários aspectos, que no geral se deixam reconduzir à ideia de que ninguém deve ser coagido ou submetido a pressões ilícitas em 'matéria de opções religiosas.
No próprio texto da Constituição se enumeram três categorias de abstenções ou omissões exigíveis do Estado, em obediência à liberdade de crenças:

a) A impossibilidade de alguém ser perseguido por causa das suas crenças - disposição que, historicamente, se explica como termo do período de intolerância religiosa, que entre mós vigorou até à época do liberalismo;
b) O dever de não se privar, quem quer que seja, de um direito, por causa das suas convicções religiosas 115;
c) A impossibilidade de se ser isento de qualquer obrigação ou dever cívico, com base nas mesmas convicções - preceito que tem real interesse prático quanto ao cumprimento dos deveres militares, pagamento ide impostos, prestação de juramento, -etc., a que algumas confissões pretendem subtrair os seus membros.

A propósito da liberdade de crenças já se tem afirmado que, não interessando ao direito senão os factos externos da vida dos indivíduos, ela se traduziria, afinal, sobre o plano jurídico, numa liberdade de expressão do pensamento. Proclamar numa lei a liberdade natural da consciência (olhando apenas ao lado interno do fenómeno) seria, por isso mesmo, no dizer de um autor, tão ridículo como proclamar a liberdade de circulação do sangue dentro do organismo humano 115.
Apesar de sugestiva, a observação não é inteiramente exacta.
Por um lado, quando a lei garante (cf. o artigo 8.°, n.° 3.°, da nossa Constituição) a inviolabilidade das crenças religiosas, pretende-se tutelar o pensamento das pessoas em matéria de religião, antes mesmo de "Ias haverem manifestado exteriormente as suas convicções.
Sabe-se como nos períodos de perseguição e de intolerância, religiosa as pessoas eram coagidas a declarar as suas convicções e com que facilidade as autoridades procediam a inquirições ou devassas nesse sentido. A inviolabilidade dias crenças, que algumas legislações proclamam em termos explícitos, visa exactamente a defesa das pessoas contra a extorsão de declarações ou confissões em matéria de religião ou contra quaisquer devassas da autoridade pública no mesmo domínio.
A Declaração Conciliar (n.° 3) começa precisamente por salientar o aspecto inicial da liberdade de crenças quando afirma que "o exercício da religião, por sua própria índole, consiste, primeiro que tudo, em actos internos voluntários e livres, pelos quais o homem se directamente para Deus; e actos deste género não podem ser impostos nem impedidos por um poder meramente humano".
Por outro lado, não se ignora que a integração das pessoas em certa confissão religiosa, um pouco à semelhança do que sucede com a nacionalidade ou a pertinência a determinada raça, se pode fazer muitas vezes independência de qualquer manifestação da sua vontade e até dos pais nesse sentido. O simples nascimento pode marcar a incorporação da pessoa em certa confissão 117 e a protecção da Uberdade religiosa há-de naturalmente estender-se às pessoas nessas condições.
Por último, não deixa de ter algum fundamento a observação feita por Dicey, quando afirma que a supressão ou a limitação da liberdade de expressão acaba por atingir a própria liberdade de pensamento.
Por todas estas (razões nos parece preferível não confinar explicitamente a liberdade de crenças à livre manifestação do pensamento iam matéria de (religião, embora se saiba que é este, realmente, o núcleo fundamental do seu conteúdo.

29. I) A liberdade de crenças, a autonomia e o magistério das confissões religiosas. - Como ajustar a liberdade de consciência, nos termos amplos em que as legislações modernas e a Igreja Católica hoje a concebem, cem a autoridade, o magistério e o poder disciplinar que se arrogam as diversas confissões, segundo o princípio da liberdade da sua organização 118?
Como conciliar, por exemplo, a faculdade que a lei civil reconheça aos nubentes de optarem livremente pela celebração do pensamento civil ou do casamento religioso com a possibilidade de a Igreja impor sanções aos fiéis que se decidam pela primeira alternativa, sabendo-se de antemão que a cominação destas penas espirituais é capaz de exercer uma influência ponderosa na decisão dos crente??
Ou como solucionar o conflito latente entre a legislação civil, que pretenda garantir a plena liberdade dos eleitores na realização de certa votação, e as instruções dadas pelos dirigentes de qualquer confissão religiosa, para que os fiéis não votem em certos candidatos hostis a essa confissão?
Poderá o Estado proteger os crentes contra os abusos dos ministros do culto ou contra as sanções da hierarquia respectiva?
A questão tom sido muito debatida na Itália, a propósito das normas legais incriminadoras dos ministros do culto que, no exercício das suas atribuições, forcem os eleitores a apresentar certas listas de candidaturas, a votar ou deixar de votar em determinadas listas ou candidaturas, ou a abster-se de votar.
Apesar da existência destes normais e de ser notória em algumas eleições dos últimos anos, a intervenção do oleiro no sentido de os fiéis não votarem em determinadas

115 Neste preceito se pode inserir a questão, já largamente ventilada em Itália, de saber como deve ser feita a regulação do poder paternal, no caso de não haver acordo entre os pais e de um deles ser crente e o outro não.
O artigo 94.° da nossa Organização Tutelar de Menores manda resolver o dissídio de harmonia com os interesses do menor. A luz deste critério, o facto de um dos cônjuges ser crente e o outro ateu não constituirá, por si só, motivo de preferência na entrega do filho. Já assim não será, se o pai crente tiver melhor formação moral e der melhores garantias quanto à educação do filho, ou se for de presumir, pela formação religiosa do próprio filho, que este teria um grande choque e sofreria seriamente com a entrega ao pai descrente.
Há ma lei civil portuguesa uma outra disposição que, de algum modo, se relaciona com o pensamento expresso na lei constitucional, embora o transcenda. Trata-se na norma (artigo 2232.° do Código Civil) que considera contrárias à lei - e, como tais, não escritas (artigo 2230.°, n.° 2) - as condições restritivas da liberdade (nomeadamente da liberdade religiosa) apostas a disposições testamentórias; cf., quanto às doações, o disposto no artigo 967.°
116 Cf. Pio Fédele, ob. cit., p. 15.
117 Haja em vista o princípio cuius regio eius religio propugnado pelos protestantes nos domínios do império germânico do período das lutas religiosas (Dr. António Leite, A Proposta de Lei sobre a Liberdade Religiosa, 1970, p. 6).
118 Quanto à forma de conciliar o magistério da Igreja Católica com a liberdade religiosa, à luz do texto da própria Dignitatu Humanae, veja-se o interessante artigo de Tomás Barberena sobre "Magistério eclesiástico y libertad religiosa", na Rev. esp. dercan., 1967, pp. 533 e segs.