712 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70
Se o Estado, no intuito de encontrar o denominador comum aos filhos de famílias com diferente formação, que podem frequentar os seus estabelecimentos escolares, imprimisse ao ensino oficial uma feição neutral em matéria de religião, como fazia, aliás, a nossa Constituição de 1933 na primitiva versão do § 3.° do artigo 43.°, não faltaria apenas a um imperativo da consciência nacional, como violaria um estrito dever de justiça.
Para completar a educação dos filhos, a grande maioria dos pais ver-se-ia forçada a integrar o ensino oficial com o recurso ao ensino particular, ou a substituir, pura e simplesmente, um pelo outro, somando no passivo do orçamento familiar à contribuição imposta para sustento do primeiro os pesados encargos do segundo. Como a maior parte deles estaria materialmente impossibilitada de o fazer, os filhos acabariam por receber, contra a vontade dos pais, uma educação diferente da que estes, principais contribuintes do fisco, quereriam que lhes fosse ministrada.
Na qualidade de principal responsável pela medida, o Estado não só sacrificaria a vontade da esmagadora maioria das famílias, como se demitiria de um dos seus mais altos deveres em face dos supremos interesses da Nação.
E o raciocínio desenvolvido a propósito do ensino colhe de algum modo, feitas as necessárias adaptações, em relação a tudo quanto respeita à constituição e defesa da família, à fixação dos dias feriados, ao estabelecimento do descanso semanal, à fiscalização dos espectáculos, à repressão da literatura licenciosa, à formação da opinião pública, especialmente através da rádio e da televisão oficiais, e a tantos outros aspectos da intervenção do Estado na vida dos particulares 101.
Não faltará quem alegue, no que respeita ainda ao caso particular, mas especialmente significativo, do ensino oficial, que é perfeitamente dispensável a referência confessional aos princípios da doutrina e moral cristãs, uma vez que esses princípios, no que têm de essenciais à formação moral dos jovens, são comuns ao cristianismo e a outras tábuas de valores, de carácter não confessional 102.
Mas não parece difícil refutar a objecção.
Começa por mão haver perfeita identidade entre os princípios da doutrina e moral cristãs, pelos quais a nossa Constituição manda pautar as virtudes morais dos jovens educandos, (c) os ditames da 'moral positiva aceites por outros sistemas.
Depois, também há boa diferença emocional entre os valores morais enraizados no húmus vivificante da fé cristã e as proposições éticas de igual expressão verbal, frouxamente ancoradas no porto inseguro da razão humana. E a distinção não pode ser indiferente às entidades responsáveis pela formação moral das novas gerações.
As considerações precedentes resumem-se na afirmação de que os vários cultos praticados em cada Estado podem ter, e assumem, de facto, na generalidade dos casos, uma repercussão muito diferente, como valores sociais, como ideias-força efectivas, na vida da respectiva comunidade populacional.
Trata-se de uma realidade sociológica incontestável, com reflexos de vária ordem no ordenamento jurídico colectivo que o Estado (mesmo não confessional) não deve nem pode ignorar no exercício das suas atribuições.
Essencial, segundo as concepções dos novos tempos, é que o Estado, ao atender a esse condicionalismo especial não negue aos particulares nem às confissões minoritárias' dentro dos limites gerais impostos pela ordem pública, a liberdade religiosa de que necessitam nem a igualdade dos cidadãos perante a lei, tal como o princípio deve ser entendido 103. "Quando o Estado, escreve Buffini, tiver garantido a todas as confissões a plena liberdade de culto, terá dado tudo quanto dele se pode exigir em matéria de liberdade religiosa."
27. Conteúdo da liberdade religiosa: A) Considerações de ordem geral. - Mas qual ó o conteúdo preciso da liberdade religiosa?
Não se torna fácil responder à pergunta formulada.
São muitos os corolários que os autores extraem do princípio da liberdade em matéria de religião e variadas as faculdades que as leis dos diferentes países, à sombra dela, outorgam concretamente às pessoas.
E, apesar disso, há sempre aspectos que escapam, tanto ao exame da doutrina como à previsão do legislador. Não falta, aliás, quem entenda (na sequência de uma concepção muito divulgada entre os constitucionalistas acerca da génese e conceito das liberdades fundamentais dos indivíduos) que o direito da liberdade religiosa tem por conteúdo, não as diversas faculdades em que a doutrina positivamente o desdobra, mas a omissão, por parte das autoridades, de todas as acções que possam contrariar o exercício da livre actuação das pessoas.
Contra essa concepção, porém, o menos que pode dizer-se é que ela enferma de um vício semelhante àquele de que padece, no campo do direito civil, a teoria obrigacionista ou personalista dos direitos reais.
Tal como esta, toda debruçada sobre o lado externo das relações reais, se não dá conta dos poderes fundamentais que caracterizam cada direito tipificado, através da ligação do titular com a res, também da concepção negativa dos direitos de liberdade, aplicada ao nosso tema, se pode
101 Assim se compreende ainda, atento o valor social muito particular que a religião católica constitui no seio da comunidade, que as associações católicas gozem de determinados benefícios fiscais não concedidos a outras confissões, que os ministros do culto católico prestem o serviço militar em condições especiais (cf. artigo XIV da Concordata), que o Estado nomeie ou contrate sacerdotes desse culto para a prestação de assistência religiosa às forças armadas ou em estabelecimentos hospitalares, penitenciários ou de reeducação, etc.
102 Cf., a propósito, a caracterização que A. Cario Jemolo (Premesse ai rapporti tra chiesa e stato, 1965, p. 13) faz do contraste entre a posição do Estado e da Igreja nos tempos modernos: "E este o contraste: entre
103 Em sentido diferente do exposto no texto, Jemolo (est. cit., n.° 7), por entender que, na prática, a ideia do tratamento especial de qualquer confissão acaba por afectar o princípio da liberdade religiosa. "Sempre que há uma religião com posição dominante em face das outras, e a consciência pública entende que ela deve ter um tratamento de que as outras não devem gozar - concessão de autonomia, falta de fiscalização estadual, prerrogativas concedidas aos seus ministros, subsídios por parte do Estado - são possíveis retornos ofensivos, senão contra a liberdade religiosa das minorias, pelo monos contra a igualdade política concedida aos seus membros."
No mesmo sentido, porém, da doutrina do texto, o seguinte trecho da Declaração Conciliar: "Se, atendendo a circunstâncias peculiares dos povos, uma comunidade religiosa for especialmente reconhecida na ordenação jurídica da sociedade, é, ao mesmo tempo, necessário que se reconheça a todos os cidadãos e comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa e que tal direito seja respeitado."