28 DE ABRIL DE 1971 707
mas basta, evidentemente, que dois ou mais particulares pretendam criar uma religião. Torna-se, pelo contrário, indispensável que a autoridade mande averiguar se existe, de facto, uma assembleia suficientemente numerosa de fiéis, devidamente organizada em torno de uma doutrina religiosa.
Para que se crie uma religião, e ela possa ser reconhecida como tal pelo Estado, é preciso que haja fiéis, que exista um corpo de doutrina em matéria confessional e que os crentes pratiquem os correspondentes actos de culto 77. Só a reunião destes três elementos, durante um período suficientemente longo (é Mortati quem afirma que a confissão religiosa necessita de ter atrás de si uma tradição), permitirá afirmar, com inteira propriedade, a existência de uma confissão religiosa.
Conceber as coisas em termos diferentes, como se para instituir uma religião bastasse redigir o articulado de uns estatutos e requerer a sua aprovação u autoridade civil competente, à semelhança de quem funda um clube desportivo na terra ou institui uma agremiação recreativa no bairro, equivale a cometer um erro crasso de qualificação das realidades.
Desvirtuar-se-ia o sentido real das palavras, diminuir-se-ia a dignidade do fenómeno religioso e correr-se-ia ainda o risco sério de deixar passar, embuçados sob a capa mística da inviolabilidade das crenças religiosas, os desígnios mais perigosos para a paz e tranquilidade públicas.
19. Apreciação da segunda razão justificativa do projecto. - Ora, a dificuldade que acaba de ser salientada quanto ao reconhecimento da personalidade jurídica das confissões não católicas necessita de ser especialmente ponderada na regulamentação da matéria, visto ela não encontrar a mais ligeira ressonância nos preceitos que definem, em tese geral, o regime jurídico do direito de associação.
E essa é, de facto, mais uma razão abonatória da iniciativa do Governo.
Dir-se-ia, porventura, que da situação de incerteza para as confissões não católicas, a que o projecto se refere, nenhuns prejuízos sérios advieram para o País, e que estes poderão, pelo contrário, levantar-se debaixo dos pés da Administração, minando a coesão social e a unidade moral da Nação, se o Governo facilitar a infiltração de factores capazes de perturbarem a paz religiosa de um povo que, até hoje, jamais conheceu dificuldades sérias nesse domínio.
Mas a essa reflexão de cunho acentuadamente pragmático não será difícil contrapor a afirmação de que o Estado só lucra em ser coerente consigo próprio, tanto na afirmação dos seus princípios, como na defesa efectiva dos valores que lhe incumbe acautelar.
Se a Constituição garante a liberdade de organização das confissões não católicas, importa assegurar a possibilidade de reconhecimento da sua personalidade jurídica, sem prejuízo dos princípios em que assenta a ordem moral, política e social do Estado. Se a lei administrativa (artigo 450.°) consagra a tese do reconhecimento das associações religiosas não católicas, mas subordina a aquisição da sua personalidade jurídica a observância das normas de hierarquia e disciplina da respectiva religião, há que proporcionar às autoridades o conhecimento oficial destas normas, sem que para tal se abdique do respeito devido à verdade das instituições.
Qualquer dos objectivos enunciados reclama neste momento a intervenção do legislador, dadas as dúvidas a que o direito vigente tem dado lugar e atentas as incertezas que, por certo, continuaria a levantar de futuro.
Assim se explica que, apesar de reconhecer a delicadeza da matéria e não ignorar os ponderosos inconvenientes de qualquer revisão legislativa nesta zona nevrálgica da consciência nacional, a Câmara reconheça a validade das razões invocadas pelo Governo para neste momento a levar a bom termo.
20. Sequência. - Falta saber, todavia, se o tema da questão religiosa deve ser revisto sob a simples perspectiva do princípio da inviolabilidade das crenças e da liberdade individual ide cultos, como aparentemente faz o projecto de proposta governamental, ou se o reexame do legislador ganharia em ser intencionalmente projectado sobre o quadro mais amplo da expressão do pensamento em matéria de religião, abrangendo ainda, em toda a plenitude, o vasto capítulo das relações do Estado com as diferentes confissões religiosas.
Três razões principais - duas, de carácter doutrinário; outra, de cunho acentuadamente prático - levam a Câmara a optar pelo segundo termo da alternativa.
Trata-se, em primeiro lugar, da orientação que melhor se coaduna com a dimensão natural do tema, quando observado através do prisma específico do Estado.
À tese da liberdade religiosa, quer dos indivíduos, quer das comunidades, pouco mais corresponde que uma atitude negativa do Estado, traduzida fundamentalmente na remoção de todos os obstáculos que possam impedir o livre exercício dos cultos. Examinada sob esse prisma a questão religiosa pouco mais seria do que uma pura faceta da liberdade do pensamento.
Assim se explica, além do mais, que o projecto tenha omitido a possibilidade de conflito entre a liberdade religiosa dos indivíduos e a autonomia interna das confissões ou associações religiosas, haja definido certos corolários da liberdade religiosa em termos que não se adaptam convenientemente ao seu real conteúdo e tenha encontrado, mesmo para a proclamação do regime de separação, fórmulas que não serão porventura as mais convenientes e adequadas.
Se o Estado quiser debruçar-se sobre a questão religiosa no intuito de proceder a uma reelaboração sistemática da matéria, encarando todos os aspectos que nela interessam às autoridades chis, não pode o legislador limitar-se à simples postura negativa do respeito pela liberdade de culto, que é um apenas entre os múltiplos
77 Em sentido paralelo, afirma Jemolo (Premesse..., p. 177) que, sem uma estrutura, um rudimento de organização, ter-se-á uma opinião, uma escola, uma tendência, não uma confissão religiosa.
Torna-se, por vezes, bastante difícil qualificar determinados movimentos, mormente aqueles que nos últimos tempos proliferaram no continente africano, pela mistura que neles se opera de aspirações de carácter político ou sócio-económico com elementos de natureza religiosa, sem ser possível determinar em alguns casos quais deles preponderam no espírito da organização. Cf. a desenvolvida e interessante notícia que destes movimentos nos dá o Prof. Silva Cunha, nos Aspectos dos Movimentos Associativos na África Negra, I, 1958, pp. 15 e segs.
Sobre os requisitos de uma verdadeira doutrina religiosa, veja-se ainda, em face das dúvidas que a questão tem suscitado na jurisprudência americana, Joseph Dodge, The free exercise of religions: a sociological approach, na Michigan Law Revieu. 67, pp. 691, 712 e segs.
"As confissões", escreve Gismondi (L'autonomia delle confessioni accatoliche, no Foro Ital., 1962, IV, cols. 100-101; cf., em sentido paralelo, Jemolo, Alcune considerazioni..., Diritto Ecclesiastico, 1931, pp. 73-81), "apresentam um carácter institucional, pela existência de uma comunidade permanente ligada pelo vínculo da fé comum e, além de uma organização, por um verdadeiro corpo de normas privativo (una vera e própria normazione).