708 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.° 70
reflexos do fenómeno religioso na ordem social e moral dá colectividade 78.
Querendo realmente examinar a questão em todos os seus aspectos, a fim de traçar o novo regime jurídico que se propõe definir sobre um quadro sociológico autêntico da comunidade portuguesa, a nova lei não pode deixar de considerar, no esquema lógico da sua concepção, as relações do Estado com as diversas confissões religiosas, nem de consignar os deveres que tem paia com elas, no plano institucional em que tais deveres têm de ser inscritos 79. De contrário, limitando-se a enunciar o princípio da liberdade religiosa e a extrair dela bodos os corolários que a ideia comporta, numa atitude filosófico-jurídica de puro laicismo negativo 80, escapar-se-lhe-á inevitavelmente das mãos um elemento fundamental no regime jurídico da matéria, que é a posição especial da religião católica (mais do que da respectiva Igreja) dentro da comunidade portuguesa, com todo o rosário de consequências que ela arrasta consigo. Em lugar ide constituir um simples apêndice, presto o corpo da lei por uma ressalva inexpressiva das especialidades concernentes à Igreja, como sucede na economia do projecto em exame, a posição da religião católica deve ser considerada parte integrante do seu articulado, membro vital do novo corpo de doutrina legislativa, porque é, uma visão autêntica da comunidade, peca fundamental de todo o sistema.
E assim se chega à segunda razão que pesa no juízo da Câmara.
Estando o princípio da liberdade de cultos ha muito tempo radicado, embora com visíveis imperfeições 81, no solo das leis pátrias, e tendo a Igreja Católica recuperado através da Concordata a liberdade de movimentos e os meios de acção indispensáveis ao exercício do seu pesado múnus espiritual em face da comunidade portuguesa, não faltaria quem observasse que o efeito prático mais saliente da publicação do novo diploma legislativo sobre a liberdade religiosa, à escala dimensionai em que o projecto da proposta foi concebido, era afinal o da eliminação dos obstáculos que a administração tem levantado ao reconhecimento das confissões não católicas e à expansão das associações nelas integradas, a despeito da roupagem mais ampla com que a ideia aparece vestida no seu articulado legal.
Essa insinuação, além de diminuir em certo sentido a iniciativa do Governo, poderia ferir legítimas susceptibilidades em sectores respeitáveis de opinião e criar certas reservas em muitos espíritos, gerando em torno do diploma um ambiente que não é o mais propício às rectas intenções que determinaram a sua concepção.
A orientação proposta parece ser, por fim, a que melhor se coaduna com o espírito da Constituição vigente, em cujo texto se encontram exarados os princípios básico de ordem jurídica estabelecida.
Todos sabem que a realidade fundamental sobre a ou assenta toda a construção político-jurídica do diploma constitucional em vigor é a Nação - a Nação portuguesa como realidade sociológica e entidade moral distinta de indivíduos que em cada momento histórico a compõem 82.
Ora, a ideia de definir todo o regime jurídico da religião à luz apenas de um princípio que. respeita fundamentalmente aos indivíduos, deixando bastante na sombra ¦> comunidade nacional, com os sulcos profundos que n pensamento religioso rasga nas várias regiões do organismo social, não se julga ser a que melhor corresponde ao espírito do diploma básico do Estado.
É, por consequência, no amplo contexto das relações do Estado com a religião que o tema da liberdade de cultos vai ser apreciado na generalidade, antes de se passar ao exame na especialidade Idos vários preceitos que integram o projecto.
§ 2.°
Enquadramento sistemático do princípio da liberdade religiosa no contexto das relações do Estado com as diversas confissões.
21. A inserção lógica do princípio da liberdade religiosa na ordem jurídica civil. - Assente que o regime jurídico do fenómeno religioso deve abarcar todas as relações do Estado com as diversas confissões no plano da comunidade nacional, em lugar de se limitar à simples prospecção da liberdade religiosa no subsolo dos direitos, liberdades ou garantias individuais, resta saber por onde principiar, que aspectos cumpre distinguir no amplo contexto daquelas relações e como articular entre si estes diferentes aspectos da matéria.
Ora, todas as razões lógicas e axiológicas pertinentes ao tema ordenam que a fixação do regime jurídico em causa parta efectivamente do princípio da liberdade religiosa 83.
E esse, de acordo com o ensinamento da própria doutrina católica, o valor fundamental que à legislação civil incumbe respeitar. E sobre a liberdade individual que assenta a integração das pessoas nas diversas confissões existentes, e é sobre a mesma grandeza que se estrutura a constituição e o funcionamento de algumas delas.
A exortação fundamental que o Concílio Vaticano II dirige aos governantes do mundo inteiro, na Declaração Dignitatis Huvianee, visa exactamente a obter que os homens sejam imunes de toda a coacção (quer da parte das pessoas particulares, quer de grupos sociais ou de qualquer poder humano) - nemo impediatur, nemo cogatur -, para que possam, de um modo adequado a sua natureza, cumprir a obrigação moral de procurarem a verdade, de aderirem à verdade encontrada e de ordenarem toda a sua vida de acordo com as exigências dessa verdade, descoberta ou revelada.
78 Em sentido paralelo escreve Bertola (apud Catalano, Il diritto di liberta religiosa, 1957, nota 200): "Les règles relatives aux rapports entre l'Etat et les institutions religieuses et celles qui concernent la garantie de la liberte religieuse et les droits liés à celle-ci ne doivent pas être considérées séparément, mais envisagées comme se liant et se conditionnant réciproquement."
79 A lei espanhola sobre a liberdade religiosa (lei de 28 de Junho de 1967), embora se destine especialmente a regular a constituição e funcionamento das confissões e associações religiosas não católicas, não deixa de proclamar, logo no seu capítulo introdutório, ao lado do direito à liberdade religiosa, concebido segundo a doutrina católica, o princípio da confessionalidade do Estado, consagrado nas suas leis fundamentais.
80 Ou, como diria Orio Giacchi (Lo Stato e la liberta religiosa, nos Études d'histoire du droit canonique, I, 1965, p. 565), de liberalismo separatista ou de agnosticismo do Estado - tudo expressões em larga medida sinónimas, destinadas a traduzir o mesmo pensamento.
81 Susceptíveis de correcção, mediante simples regulamentação da lei administrativa.
82 Cf. o relatório que precedeu a publicação do projecto da Constituição de 1933, inserto nos jornais de 28 de Maio de 1932; Oliveira Salazar. Discursos, I, p. 77; Prof. Marcelo Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5.ª ed. n.° 257.
83 Assim fez a própria lei espanhola de 28 de Junho de 1967, a despeito do relevo que nela se pretendeu conceder à afirmação da confessionalidade do Estado. "Em primeiro lugar", observa a propósito Corral Salvador ("El ordenamento jurídico español de libertad religiosa", na Revista de estúdios políticos, n.° 158, p. 88), "proclama-se com toda a nitidez o direito civil à liberdade religiosa, que se reconhece na esfera tanto individual como comunitária, em público e em particular, no plano centrípeto e no centrífugo."