28 DE ABRIL DE 1971 713
dizer com Cicala 104, que ela tem o grave defeito de olhar Apenas a sombra e não captar a luz que dá vida ao fenómeno jurídico da liberdade religiosa.
Isso não significa, porém, que não seja de facto muito difícil, se não praticamente impossível, proceder a uma "numeração exaustiva de todas as faculdades compreendidas no âmbito da liberdade religiosa. E nem sequer se considera empresa fácil a tarefa de sistematizá-las, pois estão longe de ser isentas de reparo as classificações geralmente usadas nos compêndios doutrinários.
O direito civil à liberdade religiosa, diz, por exemplo, Corral Salvador 105, é reconhecido, tanto na esfera individual como comunitária, tanto em público como em particular, quer no plano centrípeto, quer no plano centrífugo.
Mas nada custa verificar que logo a distinção capital entre as faculdades reconhecidas no plano individual e as outorgadas no plano social está longe de estabelecer uma divisória rígida entre os vários poderes contidos no direito da liberdade religiosa.
A liberdade de culto, por exemplo, tanto se aplica às pessoas singulares como às confissões. A liberdade de propaganda ou de difusão das ideias religiosas tanto aproveita aos indivíduos como às associações em que eles se integram, o mesmo se podendo dizer da liberdade de expressão e de tantas outras faculdades análogas 106.
E não surpreende, aliás, que assim seja.
A religião é um fenómeno a um tempo individual e social. Quem julga possuir a verdade, desejará naturalmente comunicá-la aos outros. Quem presta culto à divindade, esforçar-se-á por que outros o façam juntamente com ele. As confissões religiosas impõem, no geral, deveres de solidariedade entre os homens como condição essencial para a salvação de cada um deles.
Daí que, contra a ideia de que a religião ó um fenómeno de natureza íntima e espiritual, parte integrante do momento individual da vida humana, Catalano 107 tenha replicado certeiramente que "toda a religião se traduz numa deontologia humana e tem sempre importantes repercussões na vida social".
Nestas condições, o exame do conteúdo da liberdade religiosa, em lugar de ter o objectivo ambicioso de esgotar todas as faculdades nela compreendidas (num número indeterminado de faculdades diz Catalano 108 que consiste o seu exercício) e de ser levado a cabo com a preocupação doutrinária de ordenar estas faculdades segundo critérios de boa lógica formal, haverá de contentar-se com a finalidade mais modesta de salientar, sem pruridos de sistematização científica, os aspectos mais importantes do direito que interessa disciplinar.
28. B) Liberdade de crenças. - Ora, entre as manifestações da liberdade religiosa expressamente contempladas nos sistemas jurídicos modernos, salientam-se a liberdade de crenças 109 (liberdade de consciência, de fé ou de confissão lhe chama Rufini 110), a liberdade de reunião e a liberdade de associação 111.
A liberdade de crenças consiste, fundamentalmente, na liberdade de pensamento em matéria, de religião, embora no seu regime se salientem muitas vezes certas notas negativas que mão afloram na disciplina da expressão do pensam emito em geral.
Concretamente, esta liberdade traduz-se, além do mais, na faculdade de a pessoa, sem incorrer em qualquer sanção civil, ter ou não ter uma religião; aderir a uma confissão existente ou possuir convicções puramente pessoais; deixar de ter religião (tornando-se ateu) ou mudar de confissão religiosa (faculdade expressamente mencionada no artigo 18.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948); praticar ou abster-se de praticar os actos recomendados por qualquer confissão ou realizar actos condenados pela religião que professa.
Já se viu, a propósito da articulação do ateísmo com a ideia da liberdade religiosa, que esta não consiste apenas na faculdade de aderir a qualquer confissão existente ou de criar uma religião própria, pois compreende também, como afirma Catalano 112, a possibilidade de mão ter nenhuma regra religiosa, de tê-la e não a observar, de mudar de regra ou perdê-la. "A liberdade religiosa", acrescenta Pio Fedele 113, "não toma partido nem pela fé nem pela descrença, nem pela ortodoxia, nem pela heterodoxia 114."
No pólo oposto ao dos poderes em que se consubstancia a liberdade de crenças de cada indivíduo situa-se o dever genérico do Estado e das outras pessoas de, além do mais, não criarem obstáculos ao livre exercício dela e de não forçarem a conduta de quem quer que seja.
104 Corso di diritto costituzionale. Le pubbliche libertà nel diritto costituzionale moderno, 1933, p. 125 (apud G. Catalano, ob. cit., p. 40). Encontra-se, aliás, bastante acentuada, nos autores que mais atentamente se têm debruçado sobre o tema, a nota de que a liberdade religiosa não envolve um simples dever de prestação negativa para o principal sujeito passivo da relação, que é o Estado. "O Estado não cumpre, diz por exemplo Corral Salvador {Rev. esp. der. can., 1967, p. 641), pelo simples facto de garantir negativamente a liberdade; é indispensável possibilitá-la, como frequentes vezes o afirmou o Conselho de Estado de uma nação em regime de separação, e até laica, a França. Tais situações apresentam-se no serviço militar, nos hospitais e nas prisões." Em sentido análogo, S. Berlingó, L'indisponibilità del diritto di liberta religiosa, in II Dir. eccles., 1966, p. 6. Exemplo bastante expressivo deste dever activo de colaboração do Estado oferece-o a Alemanha, não só permitindo às confissões religiosas o lançamento de um imposto sobre os fiéis para sustentação do culto (Kirchensteuer), mas fazendo ainda a sua liquidação e cobrança por intermédio dos serviços oficiais.
105 Est. cit., na Rev. est. pol., n.° 158, p. 88.
106 Haja em vista o que se escreve na própria Declaração Conciliar (n.° 4): "A liberdade ou imunidade de coacção em matéria religiosa, que compete a cada pessoa individualmente, também lhe deve ser reconhecida, quando actua em comum, pois as comunidades religiosas são exigidas pela natureza social, tanto do homem como da religião."
107 Ob. cit., p. 20.
108 Ob. cit., p. 60.
109 É o nome técnico (liberdade... de crenças e práticas religiosas) que lhe dá a Constituição.
110 Ob. cit., p. 12. Varia bastante de constituição para constituição o nome dado ao direito de liberdade religiosa, na faceta que o texto salienta. As designações que predominam são as de liberdade de consciência e liberdade de cultos (Cf. Pio Fedele, ob. cit., p. 85).
111 É a liberdade de reunião e associação que alude o n.° 14.° do artigo 8.° da Constituição. Fá-lo, porém, em termos amplos, enquanto o projecto de proposta governamental se refere ao direito de reunião e ao direito de constituição de associações [alíneas i) e j) da base II], no domínio restrito da actividade religiosa.
112 Ob. cit., pp. 8 e 9. Aceitando embora o pensamento kantiano de que no domínio ético a liberdade não consiste numa arbitrária deambulação da vontade pelo campo indeterminado do possível, porque a vontade só é livre quando sujeita à lei moral, Catalano repele essa ideia quanto à noção jurídica de liberdade, por entender que esta (liberdade jurídica) só existe quando, precisamente, se garanta o arbitrário deambular (il vagare arbitrário) da vontade no campo do jùridicamente possível.
113 La liberta religiosa, 1963, p. 1.
114 Não se confunda, no entanto, esta atitude da lei com o laicismo, o agnosticismo ou o indiferentismo do Estado.
Por um lado, o garantia legal da liberdade religiosa exprime o reconhecimento positivo do valor da liberdade de consciência na realização dos fins próprios da religião.
Por outro lado, a consagração da liberdade religiosa, em termos que aproveitam igualmente a todas as confissões, não obsta, como se viu, a que o Estado possa conceder um tratamento especial a qualquer delas, em atenção à posição particular que esta ocupe no âmbito da comunidade nacional.