28 DE ABRIL DE 1971 703
12. Declaração Conciliar sobre a liberdade religiosa. - Após a assinatura da Concordata e do Acordo Missionário de 1940 e das alterações da Constituição Política introduzidas pela revisão de 1951, o acontecimento de maior relevo que pode interessar à apreciação em curso é a Declaração Conciliar sobre a liberdade religiosa 66 (Declaração de 7 de Dezembro de 1965).
Depois de reafirmar a tese de que a Igreja Católica e Apostólica é a única. Igreja de Cristo e de que a verdadeira religião se encontra no caminho que "o próprio Deus manifestou ao género humano", o Concílio proclama na Dignitatis Humanac o direito inviolável da pessoa humana à liberdade religiosa 67. Esse direito consiste, essencialmente, em os homens estarem impunes de coacção em matéria de religião, de tal modo que "ninguém seja obrigado a agir contra a sua consciência, nem impedido de actuar de acordo com ela, privada ou publicamente, só ou associado a outros, dentro dos devidos limites".
Não faltam por esse mundo fora os regimes políticos em que, a despeito do reconhecimento formal da liberdade de crenças e de culto, as autoridades públicas se esforçam por afastar os cidadãos das práticas religiosas e por tornar extremamente difícil e perigosa a vida das comunidades confessionais. Por isso, o Concílio "exorta os católicos e pede a todos os homens que considerem com a maior atenção quão necessária é a liberdade religiosa, sobretudo nas presentes condições da família humana".
Reveste ainda muito interesse para a apreciação de alguns aspectos do projecto a forma como a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo (Gaudium et Spes) define as posições relativas da sociedade civil e da comunidade eclesial 68.
O acento tónico das relações entre uma c outra é aí posto sobre a reciproca independência e a sã colaboração. "No terreno que lhes é próprio, diz-se no n.º 76 da Constituição, a comunidade política e a Igreja são independentes e autónomas. Mas ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. Exercerão tanto mais eficazmente este serviço para bem de todos, quanto amais cultivarem entre si um" sã- cooperação, tendo em conta as circunstâncias de lugar e de tempo."
13. Síntese da evolução legislativa do principio da liberdade religiosa. - Alcançado o termo da morosa evolução dos factos narrados ao longo dos números precedentes, não se torna difícil concentrar em poucas palavras o duplo itinerário que a ideia da liberdade religiosa percorreu através das vias da legislação nacional 69: relativamente à religião católica, por um lado; quanto às demais confissões, por outro.
O catolicismo teve todas as prerrogativas (e todos os inconvenientes!) de religião oficial do reino até 1910, sendo esse o estatuto que a própria Carta Constitucional de 1826 lhe conferiu durante muitos anos, mas sendo igualmente certo que as primeiras limitações à liberdade religiosa dos católicos; procedem já da revolução liberal. Proclamada unilateralmente em 1910 a separação da Igreja e do Estado, os católicos, apesar de constituírem a esmagadora maioria da população no território metropolitano, viram a sua liberdade de acção profundamente coarctada em múltiplos aspectos, ao mesmo tempo que foram interditas as ordens e praticamente extintas todas as associações religiosas.
Datam de 1917 e de 1926 as primeiras reacções, muito moderadas, contra as restrições impostas pela Lei da Separação. Mas só em 1940 a Igreja Católica readquire, na ordem nacional, a sua personalidade jurídica e recupera a sua autonomia interna, vindo a religião católica a ser reconhecida mais tarde como religião da Nação Portuguesa, com base na formação cristã da generalidade dos portugueses da metrópole e na vocação missionária da comunidade nacional em terras do ultramar.
A prática de credos diferentes do catolicismo começou por sei- rigorosamente perseguida durante o período de intolerância religiosa, que precedeu o liberalismo.
A revolução liberal pôs cobro às perseguições por motivos de religião, inaugurando assim entre nós o período da tolerância, religiosa; mas as leis do tempo só aos súbditos estrangeiros permitiram o culto de confissões diferentes da católica - e apenas o culto particular ou do-
66 Vaticano II, Documentos Conciliares, 2.ª ed., 1967, pp. 501 e segs. Sobre a laboriosa preparação e elaboração do documento, v. J. Quelhas Bigote, "A Declaração sobre a Liberdade Religiosa", in Lumen, n.° 32, pp. 290 e segs.; sobre as quatro razões (razões de verdade, de defesa, de convivência pacífica e ecuménica) que foram invocadas no concílio para que fosse proclamado o direito do homem à liberdade religiosa, cf. ainda Annalli della Facoltà di Giurisprudenza di Genova, 1965, p. 517. Para quem pretenda conhecer o diálogo entre muros que suscitou a discussão da matéria e a preparação do texto da declaração entre os padres conciliares, tem interesse a leitura da Crónica del Concilio - El debate sobre la libertad religiosa, escrita por Jorge Blajot na Razon y Fe, 1965, pp. 333 e segs.
67 Vejam-se as sugestivas considerações de A. Fuenmayor (La libertad religiosa y el bien comun temporal, sep. do Ius Canonicum, X, 1970, p. 281) sobre a forma como no proémio da Declaração Conciliar se coadunam, harmoniosamente a continuidade com o progresso essenciais ao magistério eclesiástico. "Uma advertência ou uma admoestação", escreve o autor, "para acalmar o ânimo dos extremistas, que confundem a tradição com o imobilismo ou identificam o progresso com a destruição (hacer tabla rasa) da doutrina já definida."
Pietro d'Avack ("In libertad religiosa en el magistério actual de la Iglesia Católica", no Jus Canonicum, 1965, n.ºs 3 e segs.) alude às razões que levaram a Igreja a condenar durante bastante tempo a ideia da liberdade religiosa (tal como o pensamento liberal e agnóstico do século XIX a reivindicava), afirmando que "a liberdade civil dos cultos levava à mais fácil corrupção dos sentimentos e da vida dos pontos e à propaganda da peste do indiferentismo" (haja em vista a conhecida Syllabus errorum). Segundo as concepções do autor, se o magistério pontifício do século XIX fundou a sua doutrina rigorosa, no principio teológico "extra Ecclesiam nulla salus", como reacção contra o liberalismo agnóstico da época, a doutrina mais recente da Santa Sé apoia a nova doutrina da tolerância, e liberdade religiosa num outro princípio teológico ("ad amplexandam fidem catholicam nemo invilus cogatur"), como reacção contra as tendências totalitárias dos regimes que, em larga medida, sacrificaram a dignidade da pessoa humana, nas aras de uma estatolatria desapiedadamente materialista.
68 Cf., especialmente, os n.ºs 73 e segs. dessa Constituição Pastoral.
69 No plano geral idas nações civilizadas distingue Fedele (La libertà religiosa, 1963, p. 44) quatro fases sucessivas na lenta gestação da ideia da liberdade religiosa: a das pazes entre as religiões em luta, a dos edictos de tolerância e de liberdade religiosa, a das declarações de direitos do homem e a das constituições. Esta sistematização dá apenas uma linha geral aproximada, não inteiramente rigorosa, das últimas fases da transformação operada em vários países.
Note-se que, segundo Jemolo ("Liberta dei culti", na Enciclopédia dei diritto, n.º 2), o problema da liberdade religiosa, tal como hoje o concebem os autores, não é um problema de todos os tempos.
Não o conheceram nem os Gregos, nem os Romanos.
Mas já o Egipto teria conhecido oposição de cultos: o hebraísmo veria na heterodoxia dos Samaritanos uma espécie de heresia, enquanto o islamismo teria adoptado já uma posição de intolerância em face dos pagãos e de mera tolerância perante os Cristãos e os Hebreus.
Na sua moderna configuração, a questão teria nascido apenas com, o confronto entre o cristianismo e o paganismo (ob. cit., n.° 3).