700 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.° 70
Acabou-se com a censura prévia dos escritos da Igreja, eliminando o beneplácito do Estado (artigo 12.°); suprimiram-se algumas outras limitações à liberdade religiosa (horário dos actos de culto: artigo 2.°; organização do ensino religioso: artigo 6.°; uso de hábitos talares: artigo 14.°) - tudo mo intuito expressamente declarado de introduzir na lei as urgentes modificações que, "representando... uma legítima, aspiração da consciência) católica, oprimida, são, ao mesmo tempo, uma exigência de um justo e bem equilibrado espírito liberal".
9. A revolução de 28 de Maio de 1926, o Decreto n.° 11 887 e a Constituição Política de 1933. - A questão religiosa foi um dos múltiplos factores que contribuíram para a eclosão do movimento militar de 28 de Maio de 1926. As instituições políticas haviam criado no espírito da população a ideia generalizada de não corresponderem às necessidades colectivas da época; e nesse sentido concorreu, de algum modo, o divórcio que os governantes estabeleceram, entre a legislação relativa à família e às instituições religiosas, de um lado, e as anreigadas tradições de uma comunidade nacional que nascera, se expandira e continuava a viver à sombra tutelar dos princípios da doutrina e da moral cristã, do outro.
Não surpreende, por isso, que a reacção cambra a legislação anti-religiosa de 1910 tenha prosseguido no período subsequente à revolução de Maio e haja encontrado um ambiente de franca receptividade entre os dirigentes do novo regime.
Sabe-se, todavia, que a situação política, nascida em 1926, apoiada pelas várias correntes difusas de pensamento que se associariam na luta contra o regime parlamentar, não tinha na sua base ura programa de ideias e de acção prática completamente estruturado, a que os governantes pudessem dar fácil execução, com relativa brevidade.
Assim se explica que, embora tenha principiado muito cedo o seu processo de revisão da questão religiosa, o novo regime só bastante mais tarde tenha logrado alcançar o instrumento jurídico que regularizou plenamente as relações entre Portugal e a Santa Sé 47. Com efeito, logo em 6 de Julho de 1926, o Decreto n.° 11 887, da autoria de Manuel Rodrigues, retoma o fio da questão, equiparando a capacidade patrimonial das associações religiosas encarregadas do culto à das outras associações perpétuas, estruturando o processo de aquisição da sua personalidade jurídica 48 em termos que asseguravam o pleno respeito pela disciplina interna da Igreja 49, regularizando a situação de alguns dos bens de que a Igreja fora espoliada e permitindo o ensino religioso nas escolas particulares.
Em contrapartida, no estatuto político que em 11 de Abril de 1933 50 põe termo ao regime da ditadura militar e assenta em bases jurídicas os postulados fundamentais da nova situação, não se encontra ainda nenhum sinal expressivo, nem da importância fundamental que os princípios do cristianismo exerceram e continuam a revestir na formação dos Portugueses, nem do relevo especial que por circunstâncias de vária ordem, assume a religiosa católica no contexto das relações do Estado com as diversas confissões religiosas.
No título (IX) que tratava "da educação, ensino e cultura nacional", continuava a afirmar-se o carácter neutral do ensino oficial em matéria religiosa, apenas havendo a registar, de novo, o facto de se impor aos ensinantes que não hostilizassem a religião 51.
No título (X) que, por seu turno, se ocupava "das relações do Estado com a Igreja Católica e demais cultos", também a posição desta, descontada a ressalva das cancordatas relativas à esfera do Padroado, bem corno a alusão expressa às "relações diplomáticas entre a Santa Sé e Portugal, com recíproca representação", era definida conjuntamente, sem nenhum tratamento especial, cem a das demais confissões religiosas.
"É livre - dizia o texto primitivo do artigo 45.° - o culto público ou particular de todas as religiões, podendo as mesmas organizar-se livremente, de harmonia com as normas da sua hierarquia e disciplina, constituindo por essa forma associações ou organizações a que o Estado reconhece existência civil e personalidade jurídica."
E acrescentava, na sua versão inicial, o artigo 46.°:
Sem prejuízo do preceituado pelas concordatas na esfera do Padroado, o Estado imantem o regime da separação em relação à Igreja Católica e a qualquer outra religião ou culto praticados dentro do território português, e as relações diplomáticas entre a Santa Sé e Portugal, com recíproca representação.
Antes de qualquer das disposições transcritas, no artigo que enumera os direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses (artigo 8.°), inclui a Constituição, no n.° 3.°, "a liberdade e a inviolabilidade de crenças e práticas religiosas, não podendo ninguém por causa delas ser perseguido, privado de um direito, ou isento de qualquer obrigação ou dever cívico", e ninguém sendo, além disso, "obrigado a responder acerca da religião que professa, a não ser em inquérito estatístico ordenado por lei".
10. A Concordata e o Acordo Missionário de 7 de Maio de 1940. - Mais, porém, do que no texto das leis, o novo regime político foi inscrevendo paulatinamente na consciência da Nação as premissas indispensáveis a uma profunda revisão da pendência entre o Estado Português e a Igreja Católica.
47 A razão apontada no texto há-de, no entanto, acrescentar-se, para maior rigor do diagnóstico, o facto de o ambiente religioso da época (com boa parte do próprio clero contaminado, em algumas regiões do pais, pela lassidão da disciplina que se instalou em muitos sectores da vida nacional) se não encontrar ainda suficientemente amadurecido para grandes reformas nas relações entre o Estado e a Igreja, bem como a circunstância de pesarem ainda bastante na memória das pessoas os inconvenientes que revelara o regime da religião oficial do Reino.
48 Veja-se, sobre a evolução da legislação no que toca ao reconhecimento da personalidade jurídica das confissões e associações religiosas, o estudo do Dr. Oliveira Lírio, "As Igrejas e o Estado", na Revista de Direito Administrativo, VIII, pp. 221 e segs.
49 "O regime criado pelo Decreto n.° 3856", escreve o Prof. Marcello Caetano (Manual, ed. cit. e vol. cit., p. 373), "foi consagrado e ampliado pelo posterior Decreto-Lei n.° 11 887, de 6 de Julho de 1926, que permitiu às associações religiosas adquirir e administrar bens para fins cultuais e dispor deles, nos mesmos termos que as associações perpétuas, e condicionou a constituição da que se destinassem a sustentar o culto católico à participação feita pelo bispo da respectiva diocese, obrigando deste modo os fundadores a respeitar a disciplina interna da Igreja."
50 Antes da Constituição de 1933, e ao lado do diploma de Manuel Rodrigues, é justo mencionar o Decreto n.° 12 485, de 13 de Outubro de 1926, da iniciativa de João Belo, que aprova o "Estatuto orgânico das missões católicas portuguesas da África e Timor". Faz-se no relatório deste decreto um relato, muito objectivo e excelentemente documentado, das consequências da Lei da Separação e de outras medidas legislativas afins sobre as actividades missionárias no ultramar.
51 "O ensino ministrado pelo Estado", dizia a versão primitiva do § 3.° do artigo 43.°, "é independente de qualquer culto religioso, não o devendo porém hostilizar, e visa, além do revigoramento físico e do aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, à formação do carácter, do valor profissional e de todas as virtudes cívica" e morais."