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28 DE ABRIL DE 1971 695

de instituições do tempo, expressivamente retratadas na legislação penal das Ordenações, tanto o poder civil como as autoridades eclesiásticas, em especial os tribunais de Santo Ofício, no combate ao judaísmo, na perseguição dos cristãos-novos, nos varejos às livrarias 6, nas devassas à vida particular das pessoas e ao foro íntimo das famílias nos processos de extorquir confissões nas inculpados e na repressão de todos os desvios aos dogmas da té ou às práticas de culto correspondentes à religião oficial do reino.
A carta que o Dr. Jorge Temudo escreve a D. João III, em Julho de 1524, a dar conta do resultado das averiguações secretas a que procedera, por incumbência do monarca, acerca do modo de viver dos cristãos-novos em geral, revela ao leitor (com todos os descontos que as circunstâncias impõem na sua leitura) os excessos a que descia a limitação da liberdade das pessoas nesses domínios, mesmo antes da instituição do Santo Ofício 7. "Resultava dessas informações", comenta Herculano no seu escrito bastante apaixonado sobre a Inquisição em Portugal 8, "que os cristãos-novos deixavam de assistir aos ofícios divinos nos domingos e dias festivos; que não se enterravam nas igrejas paroquiais, mas sim nos adros de alguns conventos ou nos claustros deles, em sepulturas profundas ou em terra virgem; que, moribundos, não tomavam nem pediam a extrema-unção; que, nos testamentos, não mandavam dizer missas por suas almas ou, se algumas se diziam, eram raramente, não ordenando nunca trintários, nem sufrágios ao oitavo dia do óbito, nem aniversários; que havia suspeitas de guardarem os sábados e páscoas antigas; que se confessavam durante a Quaresma, comungando na Quinta-Feira Santa ou em dia de Páscoa; que na doença se confessavam, e uns tomavam o viático e outros não, dizendo que não podiam, ou não o mandando buscar; que exerciam actos de caridade entre si, porém, não para com os cristãos-velhos; que ern tempos de peste enterravam cuidadosamente os mortos, sem distinção de raça; que se desposavam à porta da igreja e baptizavam seus filhos, guardando à risca todos os ritos e solenidades do estilo."
Mais tarde, pela bula de 23 de Maio de 1536, a função repressiva das heresias, tendo especialmente em vista os judeus e os infiéis, transitou do episcopado para os tribunais especiais do Santo Ofício 9. E todos sabem também corno era extenso o rol de culpas que cabiam na alçada inquisitorial cuja competência abrangia a investigação e a repressão de delitos de vária natureza, desde as práticas judaicas, luteranas ou maometanas, as feitiçarias e os sortilégios, até aos pecados da bigamia e da sodomia.
Se considerarmos o poder de que a instituição desfrutava e a acção repressiva que efectivamente parece ter exercido no País, não será difícil concluir que tão significativa, pelo menos (quanto ao espírito da nova época), como a concessão, em 1622, da liberdade particular de culto a favor dos súbditos de Estados estrangeiros, é a abolição dos tribunais do Santo Ofício, por decreto da Regência de 5 de Abril de 1821, na sequência da resolução tomada pelas Cortes Constituintes, em 31 de Março do mesmo ano 10.

4. Carta Constitucional de 1826 e o período subsequente. - A Carta Constitucional de 1826, que durante muitos anos, com vicissitudes de vária ordem, constituiu o estatuto fundamental da vida política do País 11, manteve o princípio doutrinário ida religião oficial do reino, que pràticamente se traduzia em múltiplas interferências, quer do Estado na organização religiosa dos fiéis, quer da Igreja Católica mo governo temporal dos cidadãos. Mas conservou também a ressalva inscrita na Constituição de 1822 em benefício dos estrangeiros, aos quais se continuava a permitir o culto doméstico ou particular de religiões diferentes da católica, em casas para isso destina-

6 É interessante registar que mesmo a Constituição de 1822, são obstante a expressiva proclamação da liberdade de pensamento contida no artigo 7.° ("A livre comunicação dos pensamento é um dos mais preciosos direitos do homem"), não deixava de manter no artigo imediato o poder de censura dos bispos em relação aos escritos sobre dogma e moral, devendo o Governo auxiliar as autoridades eclesiásticas na punição dos culpados.

Esta atitude foi determinada, sobretudo", na interpretação do Prof. Marcello Caetano (Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5.ª ed., 1967. p. 380), "pela necessidade de conciliar as simpatias da Igreja que a origem maçónica dos chefes do vintismo tinha levado a uma posição de desconfiança, senão de hostilidade às novas ideias constitucionais."
Qualquer, porém, que tenha a razão determinante da sua inclusão no diploma constitucional, a medida não era senão, no essencial, a continuação da doutrina que D. Maria I repusera, por Lei de 17 de Dezembro de 1794 e alvará de 30 de Julho de 1795, na sequência das reclamações formuladas pela Santa Sé contra a avocação de poderes que a Coroa praticara no consulado de Pombal (Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, IV, parte III, 1922, p. 10).
7 Diga-se, no entanto, em abono da verdade, que igual regime de intolerância vigorava na generalidade dos outros países, sobretudo depois que o aparecimento de certas heresias (como as dos valdenses e albigenses) e a erupção do protestantismo na Europa (com o calvinismo, o luteralismo e o auglicanismo à cabeça) imprimiram grande acuidade à questão religiosa. As lutas religiosas entre católicos e protestantes, que atingiram nalguns desses Estados aspectos da maior violência, nunca se propagaram à Península.
Mas, por quase todo o lado, era o clima da intolerância que dominava o ambiente na fé. "Católicos, protestantes, muçulmanos", escreve o Dr. António Leite (A proposta de lei sobre a liberdade religiosa, separata da Brotéria, 1970. p. 6) ao retratar a mentalidade religiosa da época, "faziam todos o mesmo raciocínio: só a verdade tem direitos. Ora a religião católica (protestante , muçuçmana) é verdadeira. Logo só ela tem direitos, e, portanto, as demais religiões devem ser proibidas. Acrescia também a razão de Estado: importa sumamente a unidade, mesmo religiosa, da Nação; portanto, todos os seus membros devem professar a mesma fé. O soberano deve, pois, ter como suprema obrigação propagar ou ao menos defender a verdadeira fé"
Acrescente-se, par outro lado, que nem no Brasil nem nos territórios de África ou da Ásia integrados no ultramar português se registaram perseguições religiosas de perto eu de longe comparáveis às que ocorreram em algumas antigas possessões europeias.
8 A. Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 7.ª ed., I, p. 189.
9 Sobre a natureza régia do Santo Ofício e a competência do monarca para a nomeação dos inquisidores-gerais, veja-se a curiosa carta de D. José para o Cardeal da Cunha, com data de 15 de Novembro de 1771. O documento mostra claramente como Pombal (à semelhança de outros governantes da época) procurou, delirante algum tempo, converter os tribunais da Inquisição num instrumento da sua vigorosa política, regalista. Cf. António Barão. Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, III, 1938. p. 7; J. Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos-Novos Portugueses, 1921, pp. 346 e segs.
Tem ainda interesse, para o mesmo efeito, a leitura do ofício dirigido pelo Marquês, em 10 de Julho de 1755, ao ministro português em Roma: cf. Jordão de Freitas, 0 Marquês de Pombal e o Santo Ofício da Inquisição, Lisboa, 1916, pp. 14 e segs. A bibliografia mais importante sobre o tribunal eclesiástico instituído em Portugal no reinado de D. João III vem referida no preâmbulo da ob. cit. de J. Lúcio de Azevedo.
10 Carlos José de Meneses, A Inquisição em Portugal, 1892. II. pp. 294 e segs.; Fortunato de Almeida, ob. cit. e vol. cit. p. 18.
11 Sobre os três períodos de vigência da Carta, entre 1826 e 1910, veja-se Prof. Marcello Caetano, ob. cit., n.ºs 221 e 225.