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696 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70

das, com a condirão de não revestirem forma alguma exterior de templo 12.
Ao lado da excepção aberta para os súbditos de outras nações, especialmente destinada por certo a garantir uma discreta liberdade de culto aos cidadãos ingleses que as invasões napoleónicas e as relações mercantis com o Reino Unido trouxeram até Portugal, a Carta consignava ainda um outro princípio muito importante, em matéria de religião, no titulo referente aos "direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses".
"Ninguém", diz o § 4.° do artigo 145.°, "pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública 13."
Esta abolição formal das perseguições religiosas representa uma alteração bastante significativa na situação jurídica anterior ao advento da revolução liberal, como abandono definitivo da ideia da adesão forçada a determinado credo, à qual durante muito tempo se deu como apoio a interrogação de Santo Agostinho: quac est enim peior mors animac quam libertas erroris? 14.
Não faltará, porventura, quem pense que a modificação operada é, em certo aspecto, mais aparente do que real, uma vez que persistia o devei de respeitar e religião do Estado e entre os crimes contra a religião do Reino, punidos na legislação penal vigente, figuravam, além de outros, os actos seguintes: a tentativa de propaganda de doutrinas contrárias aos dogmas católicos definidos pela Igreja (artigo 130.°, n.° 2.°, do Código Penal); a tentativa, realizada por qualquer meio, de fazer prosélitos ou conversões para religião diferente, ou seita reprovada pela Igreja (artigo 130.º, n.° 3.°), bem como a celebração de actos públicos de um culto que não seja o da mesma religião católica (artigo 130.°, n.°4.°).
À objecção poderia, no entanto, retorquir-se, com Fortunato de Almeida 15, que raríssimas vezes as sanções cominadas na lei foram realmente aplicadas pelos tribunais. "Geralmente", escreve o douto historiador, "nem os agentes do Ministério Público se julgavam obrigados a promover contra os delinquentes, nem havia quem compelisse ao cumprimento de tal dever."

O panorama geral que, em matéria de religião, a sociedade portuguesa oferecia a um observador atento, logo à entrada do segundo quartel do século transacto, poderia, com efeito, resumir-se nos seguintes traços fundamentais:
Por um lado, a liberdade de culto público só existia em relação à religião, católica. Cessaram, porém, as perseguições individuais por motivos religiosos, quer porque os textos legais consagrassem o princípio da liberdade de pensamento, quer porque à consciência moral dominante, num país onde os dissídios religiosos nunca atingiram a gravidade que revestiram noutras nações cristãs, repugnassem as devassas ao foro íntimo das pessoas e das famílias. E admitia-se a liberdade de culto particular, num primeiro rasgo do movo princípio da tolerância religiosa; que começava a despontar no firmamento jurídico das nações civilizadas, em benefício dos súbditos estrangeiros.
Por outro lado, sentia-se que o espírito da época muito diferente, de facto, em pontos que directa ou indirectamente buliam, com a matéria da fé e a posição da Igreja perante a sociedade civil, da mentalidade intransigente sob a tutela da qual haviam florescido as instituições do ancien régime 16.
O iluminismo setecentista, com a sua hipertrofia da razão, tivera já uma notória influência na política regalista concebida e executada com mão de ferro pelo Ministro de D. José 17, que a breve trecho, pela Lei de 25 de Maio de 1773, acabou com a discriminação entre cristãos-velhos e cristãos-novos, na ascensão a quaisquer postos e honras 18. O raciomalismo e o enciclopedismo começavam a penetrar nas escoteus, procurando demolir alguns dos dogmas ditada pela fé ou aceites pelas concepções metafísicas do Mundo E as sociedades secretas de feição anti-eclesiástica, favorecidas pelo ambiente especial que as invasões francesas e a presença dos militares ingleses criaram na capital do País, lograram arregimentar muitos dos melhores valores da classe burguesa 19. Esta principiava a ter consciência da sua força, foi-se assenhoreando pouco a pouco de algumas das alavancas do Poder e começou a minar os alicerces do edifício social sobre o qual assentava o regime da união entre o trono e a religião católica.

5. A legislação laicista do advento da República: a) O Decreto de 8 de Outubro de 1910. - O terceiro marco fundamental que assinala, na via prática da legislação estadual, a rota específica da questão religiosa, depois do rasgo inovador da Constituição de 1822 e da acção de consolidação da Carta Constitucional, é a famosa Lei da Separação - Lei de Separação da Igreja e do Estado. O nome por que ficou geralmente conhecido o Decreto de 20 de Abril de 1911, em larga medida inspirado na Lei de separação francesa, de 9 de Dezembro de 190o, resulta da separação que nele formalmente se estabeleceu entre o Estado e a Igreja Católica. "A partir da publicação do presente Decreto com força de lei", diz o artigo 2.º do diploma, "a religião católica apostólica romã a deixa de sor a religião do Estado."
A fórmula usada para estabelecer o regime de separação mostra desde logo que o legislador teve, antes de tudo, a intenção de proclamar o carácter não confessional do Estado.
Advirta-se, porém, que a Lei da Separação não foi o primeiro diploma sobre assuntos de religião promulgado pelo novo regime. Já antes dela, três dias apenas transcorridos sobre a proclamação da República, o Decreto de 8 de Outubro de 1910 definira, em tom bastante expressivo, o diapasão pelo qual iria afinar toda a legislação laicista da época.
Nele se reafirmava expressamente (artigos 1.° e 2.°) a plena vigência, quer das Leis Pombalinas de 3 de Setembro de 1759 e de 18 de Agosto de 1767, que expulsavam para sempre de todo o País e seus domínios, como desnaturalizados e proscritos, "os membros da Companhia de Jesus", quer do Decreto de 28 de Maio de 1834 (artigo 3.°), que extinguira "todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de

12 "A religião católica apostólica romana", diz o artigo 6.º da Carta, "continuará a ser a religião do reino. Todas as outras religiões serão permitidas aos estrangeiros com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem fornia alguma exterior de templo."
13 Doutrina que aparece repetida no artigo 11.° da Constituição de 1838.
14 Jemolo, est. cit., n.° 3.
15 Ob. cit. e vol. cit., p. 12.
16 Sobre a evolução da ideia da liberdade religiosa entre os grandes pensadores leigos, veja-se Jemolo, est. cit., n.° 8.
17 Prof. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 195.
18 J. Lúcio de Azevedo, ob. cit., p. 351. Pela mesma época concedia o imperador José II, da Áustria, uma das figuras mais salientes do chamado "despotismo esclarecido", a liberdade religiosa aos protestantes.
19 Sobre o ambiente geral da Europa no período subsequente à Revolução Francesa, veja-se, entre outros, M. Petroncelli, Manuale di Diritto ecclesiastico, p. 61, n.° 20.