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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 157
prejudicasse a última. Se, em virtude de excessivo receio de ser perturbada a ordem internacional, a organização vai nascer sob o signo da desconfiança e em nome da segurança própria ou alheia se pretendem impor demasiadas restrições à liberdade dos povos ou se lhes nega a justiça a que têm direito, bem pode acontecer que os germes da guerra se nutram do mesmo seio em que se quere amamentar a paz. (Vozes: — Muito bem!) (Palmas). Mas nisto, como em outras cousas, é preciso confiar nalguns homens responsáveis, e eu não ponho malícia nenhuma em dizer que pode haver razões ponderosas para falar de amizade com a mão no punho da espada. A paz é, como a ordem nas sociedades, sobretudo uma criação do espírito: ou se vive ou de facto não existe. Se se alimenta da justiça, exige também a limitação de ambições territoriais ou de simples influência, o respeito do direito alheio, a consciência da solidariedade internacional, o culto dessa deliciosa flor de humanidade que séculos de civilização foram amorosamente cuidando e vimos desfolhada, calcada, desfeita pelos horrores da actual guerra.
Muitas pessoas mostram-se preocupadas com as dificuldades que possam opor-se à entrada de algumas nações para o novo organismo internacional. Se tenho entendido bem o que se pretende, atrevo-me a dizer que não há aí nenhum problema, mas precisamente no inverso. Quero dizer que o difícil não é que algumas não possam, mas que não queiram entrar, ou, depois de ter feito parte da sociedade, pretendam abandoná-la. E a razão é a seguinte:
A solidariedade é um facto, não é uma norma de conduta: é preciso elevar-se a considerações de outra ordem para extrair dela um dever moral; mas no estado actual das coisas é impossível chegar a uma regra jurídica. Por outro lado, a experiência mostra que mesmo no nosso tempo foi possível a uma nação isolar-se do convívio internacional, tornando o mundo mais pequeno e a humanidade mais pobre, porque o isolamento lhe conveio e teve fôrça para mantê-lo. De modo que a nova sociedade das nações terá de ser ao mesmo tempo universal e voluntária, até que a consciência do mundo imponha a sua obrigatoriedade. E esta virá um dia. Entretanto muito mal avisados andariam os que procurassem contrariar de qualquer modo a adesão dos diversos países ou se entretivessem a incluir no pacto condições ou exigências inaceitáveis! (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Palmas).
Por nosso lado, devemos crer que nenhum diploma pode ter ido mais longe neste sentido que a nossa Constituïção, em parte pela consideração dos novos tempos, em parte pelo modo especial de ser da gente portuguesa, que, ao espalhar pelo mundo a civilização do Ocidente, o fez com aquele espírito de humanidade, de colaboração universal, de compreensão e desinterêsse que ainda hoje a afirmam ou lhe consagram a memória. Isto quere dizer que nenhuma dificuldade pode daí advir a uma colaboração internacional intensa, à solução amigável de conflitos, a qualquer organização que procure a paz entre as nações, com verdadeiro espírito de a alcançar.
As necessidades de reconstrução da Europa, os problemas políticos e sociais nascidos da guerra são de tal envergadura e urgência que a nenhum povo, e muito menos aos que foram poupados, será lícito abster-se de prestar a sua contribuïção com espírito de larga generosidade. (Vozes: — Muito bem!).
O desenvolvimento que dei a esta matéria é devido a não me ter nunca ocupado dela e de modo algum à convicção de que toda a política externa portuguesa se vai reduzir a uma eventual adesão a qualquer organismo herdeiro ou substituto da Sociedade das Nações, de que temos sido nestes desolados tempos de abandono cooperadores fiéis e pontuais. (Vozes: - Muito bem!). Dentro dêsse vasto quadro e para além dos seus fins próprios, as actividades que dimanam das relações de vizinhança, de alianças e de afinidades étnicas e culturais continuarão a afirmar-se. E, ao rever o problema sob êste aspecto, creio firmemente que nada está errado na nossa política passada e, pelo contrário, estão valorizadas todos os elementos com que há-de construir-se o futuro. (Vozes: — Muito bem!). Os chamados «acordos regionais», cuja admissibilidade as realidades presentes aconselham, ressalvarão para nós, e em primeiro lugar, como o instrumento de mais vasto alcance, a aliança inglesa e permitirão o desenvolvimento das relações, já tam estreitas, com os Estados Unidos, a França e os nossos vizinhos coloniais, a política peninsular e esta íntima ligação com o Brasil, que não está escrita em tratados, por viver no sangue dos dois povos. (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Palmas). Enraïzados aqui e em África, em largas costas do Atlântico, para onde, por fatalidade das circunstâncias, se vai mudar o centro de gravidade da política do Ocidente, temos bem garantido o nosso lugar, e o único problema que se nos põe é saber se nos manteremos à altura das nossas responsabilidades. (Vozes: - Muito bem!).
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É sob o peso desta idea que entro no terceiro capítulo das minhas considerações, capítulo que, depois de madura e penosa reflexão, se me afigura poder resumir desta maneira: «a guerra foi por toda a parte feita com a liberdade possível e a autoridade necessária, e à paz acontecerá a mesma cousa». (Vozes: — Muito bem!).
Entre alguns milhares de mensagens a propósito do têrmo da guerra na Europa, chegou-me às mãos uma que, depois de considerar a «oligarquia» por mim representada, abrangida na derrota, pelo que não poderá escapar ao destino comum, me aconselha a entregar imediatamente o Govêrno do País aos «verdadeiros democratas». (Risos).
Talvez porque do Govêrno se possa dizer o que Vieira disse da vida — não haver mais seguro sinal de haver de durar pouco do que ter durado muito —, talvez pela consciência da fadiga própria e alheia, anotei com interêsse a sugestão. Mas porque me não é lícito deixar cair na rua o Poder, pus-me singelamente, sem artifícios ou pedantismos doutrinários, à procura dos verdadeiros democratas portugueses. (Risos). A questão é difícil, mas eu vou esforçar-me por apresentá-la em termos simples.
A guerra foi conduzida pelas potências aliadas sob a bandeira da democracia e do anti-nazismo, mas sempre me pareceu evidente que êstes dois termos traduziam apenas as duas faces ou aspectos da mesma concepção filosófica e política, e não envolviam o ataque a formas diversas de organização do Poder. Estavam, na doutrina nazista, incluídos dois conceitos: o de Estado totalitário, a cuja potência e a cujos fins tudo estava subordinado — o trabalho, a inteligência, a liberdade da consciência humana, coisas mais preciosas do que a mesma vida; o de Estado hegemónico na organização da sociedade internacional, fundado na superioridade racial, de cultura e de fôrça, entre nações dependentes, cuja segurança e destino deviam ser garantidos pelo primeiro. E tudo o mais era redutível a isto. Certa dose útil de realismo na política interna e externa, certa subordinação conveniente das actividades humanas e mesmo do govêrno dos povos a conclusões da ciência experimental caíram, por aberrações da inteligência e falta de limites morais, em absurdos e exageros monstruosos. Em