19 DE MAIO DE 1945
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tal sistema de doutrinas a deïficação do Estado fazia correr sérios riscos à dignidade humana e tomou, pela, prática instável e perigosa a vida internacional. Mas nós não temos de lançar-lhe agora uma pedra: não só numerosas vezes marcámos a nossa discordância, mas de modo expresso o discurso inaugural do I Congresso da União Nacional, realizado há onze anos, expôs definitivamente o nosso modo de ver a êste respeito. (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Palmas).
Vejamos agora o mesmo problema por outro aspecto. Quando o Primeiro Ministro britânico dirigiu ao povo da Itália a sua célebre mensagem sôbre a democracia, tinha naturalmente vivo no seu espírito o quadro das instituïções inglesas, tanto no respeitante à garantia das liberdades públicas, como à orgânica dos poderes do Estado. Mas quem quere pode notar que no segundo aspecto a definição já não quadrava à democracia americana, e sob nenhum dêles ao Estado Russo. Também êste apresentou o seu conceito, indo buscar à essência da democracia, não à maior ou menor intervenção dos cidadãos na organização do Estado nem ao maior ou menor grau das liberdades públicas, mas à finalidade, da acção governativa, ao interêsse ou à classe cujas prerrogativas são o escopo supremo da actividade do Estado — na hipótese a classe operária. E tenho de concluir que, se é indiscutível ter o totalitarismo morrido por efeito da vitória, a democracia, tanto na sua definição doutrinária como nas suas modalidades de aplicação, continua, sujeita a discussões. (Vozes: — Muito bem!). E bem.
Cada país em que os dirigentes políticos têm plena noção das suas responsabilidades há-de ter as instituïções que melhor se adaptem ao seu modo de ser e dele façam elemento prestante da comunidade internacional e há-de conceder e garantir aquele grau de liberdade consentâneo com a eficiência das disciplinas interiores do homem e exteriores do meio social. Sem isso não haverá ordem e progresso interno nem colaboração que preste com as mais nações. (Vozes: — Muito bem, muito bem!).
Se a nossa Constituïção não adopta o regime parlamentar e se aproxima mais do regime presidencialista, tirando de um e outro o que mais convinha; se a representação nacional, ainda sob uma forma dual através da Assemblea e da Câmara, Corporativa, evoluciona neste ou naquele sentido; se o Govêrno tem, em competência com a Câmara dos Deputados, amplos poderes legislativos, não julgo valer a pena estabelecer grandes discussões doutrinárias para defender ou combater tais soluções; o que mais interessa é averiguar se ela deu paz e ordem à Nação, se a fez progredir em benefício da colectividade, se a converteu em elemento perturbador ou colaborante na vida internacional. (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Palmas prolongadas). Nisto, que é a vida vivida por todos, todos concordarão comigo; alguns porém formularão, receosos, uma dúvida quanto ao exercício de certas liberdades públicas. Atacarei de frente a dificuldade.
Podemos abertamente reconhecer que a Constituïção de 1911 e leis complementares eram neste particular mais generosas que o regime actual - mais generosas para os que se contentam com fórmulas abstractas, vazias de conteúdo, porque os que tivemos alguma experiência das coisas tiramos dela que, no respeitante a liberdades públicas, se interessa o grau em que são reconhecidas, muito maior valor tem a sua garantia efectiva. Isto é, as liberdades interessam na medida em que podem ser exercidas e não na medida em que são promulgadas. (Vozes: — Muito bem, muito bem!) (Demorada ovação).
Visto o problema a esta luz, que é a sua luz verdadeira, impõem-se logo duas conclusões: uma, na ordem dos factos, e é que se goza hoje em Portugal de maior liberdade do que anteriormente (Palmas); outra, no terreno dos princípios, e é que o grau das liberdades públicas efectivas depende da capacidade dos cidadãos, não de concessão magnânima do Estado. (Vozes: — Muito bem!). (Palmas). Se não se pôde até hoje ir mais longe do que se foi, poucas verificações serão mais gratas ao nosso espírito, nenhum resultado acreditará mais a nossa própria obra de reeducação política do que poder avançar sem receio num domínio do qual aliás em toda a parte está excluído o absoluto, isto é, o ilimitado. (Vozes: — Muito bem!).
Pode aqui e além, por desconhecimento ou deturpação dos factos, erguer-se uma ou outra voz a acusar o nosso regime de ditadura opressiva do povo português, desviado, pela fôrça, da sua normalidade política. Êsses estão confundidos: não vivemos em ditadura, mas antes de nós e por dezenas de anos —reconhecemo-lo com tristeza — as ditaduras foram a forma corrente da vida política e vimo-las alternar-se ou suceder-se quási ininterruptamente, sob formas diversas — a ditadura dos govêrnos, sempre a melhor; a dos partidos, a mais irresponsável; a da rua, a mais turbulenta e trágica. (Vozes: — Muito bem, muito bem!). Êsses estão confundidos e esquecem que a Constituïção foi sancionada por plebiscito popular, nem melhor nem pior que todos os outros, e tem sido revista por uma Câmara eleita por sufrágio directo. Esses esquecem que não temos deportados por delitos políticos, nem exilados forçados da Pátria. (Vozes: — Muito bem!).
Se passarmos às realizações sociais, de que beneficia a grande massa da população, não pode haver o menor receio de proclamar a benemerência, a justiça, a ousadia da nossa obra, comparativamente com as promessas vagas e os tímidos vôos da anterior legislação. (Vozes: — Muito bem!). Certamente trabalhamos com os nossos princípios e organizações e pelos métodos que nos parecem melhores. Mas, em igualdade de condições e na precariedade das circunstâncias actuais, duvido que algures se tenha ido mais longe. O salário, a habitação, a escola, o recreio, as férias, a saúde, a reforma, as possibilidades de acesso, a dignidade da função — tudo o que material ou moralmente pode interessar ao trabalhador foi assente em alicerces para poder desenvolver-se e perdurar, e é nos diversos domínios da economia nacional mais do que promessa ou esperança — é realidade já viva. (Vozes: - Muito bem!).
Eu não quero forçar conclusões, mas, se a democracia pode ter, além do seu significado político, significado e alcance social, então os verdadeiros democratas somos nós. (Palmas prolongadas). Afirmo-o, sem acrimónia, mas convicto; nem tal conclusão poderia ter o ar de desafio em bôca de quem sempre proclamou não sermos todos demais para servir Portugal. (Vozes: — Muito bem!) (Palmas).
Pelas razões expostas e por muitas outras que fàcilmente se subentenderão, o Govêrno não viu, da sua parte, necessidade de introduzir na Constituïção profundas alterações, durante o trabalho de revisão a que a Assemblea deverá proceder, ainda que num ou noutro ponto se deixassem possibilidades susceptíveis de futuros desenvolvimentos nas leis ordinárias e no sentido indicado pelas conveniências nacionais. Expressamente se deseja mais numerosa a composição desta Câmara, mais reforçado o seu poder de fiscalização da acção governativa e da administração pública e para tanto um pouco mais largo o período do seu funcionamento e diverso o método de trabalho. Embora se proponha que a actividade legislativa do Govêrno se torne indepen-