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29 DE NOVEMBRO DE 1946 17

duas grandes culturas: a cultura espiritualista, de que a índia é tão ciosa, e o ideal da universalidade da Civilização Cristã, de que o Portugal das Descobertas e Conquistas foi o abençoado e nunca esquecido paladino.
Tive receio, porém, de que a minha palavra fosse a voz de Cassandra no festim de Príamo...
O dia 25 de Novembro era um dia de festa para as terras de Goa! Ressoavam nos nossos ouvidos os ecos das vozes que há quatro séculos e meio se trocaram nos mares da índia, por entre o marulho das ondas que na branca areia das nossas praias soluçam a sua canção eterna.
-Para onde vos fazeis rumo, Senhor, com uma frota tão poderosa ? -encetou a fala o bergantim de Timoja.
- A Suez, a combater os turcos - acenou em tom resoluto o galeão de Afonso de Albuquerque.
-Para que irdes tão longe, se os encontrais aqui, de alfange afiado, ao pé de nós?
E, após demorado e secreto conciliábulo em que tomaram parte hindus de Goa e portugueses de Portugal, os marinheiros de Albuquerque investiram em tropel contra a fortaleza de Pangim.
Foi acérrima a luta! As vozes de comando do Crescente foram sufocadas pela fumarada dos petardos de Portugal e pelas cargas de lança dos soldados de Timoja. E, tendo os dominantes debandado espavoridos para à cidade de Goa, oito nobres hindus entregaram a Albuquerque as chaves da fortaleza, pedindo-lhe que acolhesse com magnanimidade o povo que se apinhava sob a protecção do seu gládio de conquistador.
Sob sua honra o jurou o fidalgo português. E as tubas dos clarins repetiram a proclamação ditada pelo seu peito honrado: «Mando que ninguém, sob pena de morte, toque nos naturais ou nos seus bens. São súbditos do Rei de Portugal e como tal têm de ser respeitados!».
Assim reza a história; assim aprazia-nos repeti-lo, para o entendimento da posteridade!
E em solene cortejo, que da velha Sé ia à capela de Santa Catarina, se renovava cada ano essa cerimónia cívica, afervorando em peitos de homens, instilando em corações de crianças o culto por essa epopeia seiscentista, que teve a escorá-la o ideal da expansão universalista da Ética Cristã, em que se amalgamaram num mesmo sentimento de igualdade cívica os velhos portugueses de Portugal e os novos portugueses de além-mar!
Ter-se-á repetido em 25 de Novembro esse grandioso cortejo que, há ainda um ano, vi realizar-se em todo o seu esplendor e que ressurge ante os meus olhos como uma das mais belas imagens da história de Goa? E, a ter-se realizado, sob a iniciativa oficial, tê-la-á escudado o povo com o deslumbramento dessa chama interna que dantes o insuflava? Chi lo sa?!
Meus senhores: encontra-se a grande índia no caminho franco da sua independência. E como sucede em todas as mudanças de regimes, encontra-se também a braços com uma convulsão social das maiores na história do Mundo. O cântico de libertação, entoado por milhões de indianos que desfraldam a bandeira do Congresso Nacional, inflama as multidões, mesmo que se não abriguem à sombra daquela bandeira partidária. Porque, quaisquer que sejam as suas dissidências internas, acham-se todos unificados no brado unísono que varre a península como a lava que queima as vertentes da montanha: quid Índia!
E, por uma mutação psicológica, corrente em tal ordem de fenómenos, este anátema, que nessa grande índia visava primitivamente o sazão, não poupa os representantes dos demais povos do Ocidente, e o coração das massas incultas começa já a votar à mesma galera de condenação, de revolta e de ódio os próprios filhos da índia que, mercê da sua educação, sejam porventura os expoentes da cultura ocidental!
Às nossas pequeninas terras, de estrutura latina - a índia Francesa, a índia Portuguesa -, grãos de areia engolfados na imensidade do solo indiano, chegam já os ecos desse cântico de revolta que, há uns meses, tendo sido apenas a expressão esporádica de meros gritos individuais, se têm mais e mais avolumado desde o começo deste ano, numa torrente que ameaça subverter a paz dos nossos lares e é de molde a causar sérias apreensões.
O nosso camarada e digno Deputado Sr. Botelho Moniz, com a elegância que caracteriza a sua alma afectiva, teve a gentileza de dizer nesta sala que ouvira a minha primeira mensagem a esta casa com os olhos marejados de lágrimas. Hoje sou eu, com o coração mergulhado em dor, que chamo nesta Assembleia a atenção dos nossos estadistas para o perigo que corremos e ouso perguntar: qual o futuro que está reservado à nossa pequenina índia Portuguesa, perdida no seio desse enorme colosso, que, ostensivamente, sem metáforas nem eufemismos, pela boca dos seus leaders, declara que nos quer absorver?
É mais que tempo de encarar a situação com calma e com dignidade!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: acabo de passar seis meses na Índia, despojando a toga de quirite para reverter ao anonimato do meu gabinete de estudo. E na paz e no silêncio do meu retiro, que não permiti fosse invadido pela peçonha das paixões políticas, pude apreender com certa nitidez, no limite, evidentemente, dos apoucados recursos do meu espírito, a enormidade da anarquia que avassala neste momento as mentes indianas: ódios de seitas, Hindustans, Pakhistans, Dravidistans arreganhando-se os dentes como feras em circo romano!
De um lado, a doutrina da não violência pregada às massas ávidas de sorverem a palavra do mestre; do outro lado o dementado encorajamento da invasão da terra de outrem, o que para o meu intelecto, liberto da névoa das paixões humanas, constitui a pior das violências, porque é a violação do domicilio alheio.
Aqui, a resistência passiva; além, a acção directa! Por toda a parte um desequilíbrio desconcertante entre o ideal e a realidade, entre o pensamento e a acção, que os grandes leaders são, no entanto, impotentes para orientar e controlar e não podem evitar que descambe nessa orgia de extermínio e de sangue que tem vitimado inocentes viandantes nas belas e sumptuosas cidades do Hindustão!
E chego a desconhecer o meu pequenino e risonho país! Aquela linha de correcção e de elegância, que era o orgulhoso património dos filhos da minha terra, acha-se por momentos desviada pela onda de agitação que, invadindo as massas nessa grande índia, já começa a querer infiltrar-se na paz do nosso próprio solo!
As minhas palavras têm de ser ponderadas, porque são cheias de responsabilidade. Pois na verdade vos afirmo que dentro do nosso território, na nossa casa, por conseguinte, raras vezes terá havido, mesmo nos tempos mais revoltos da nossa história política, eventos que se pareçam com o que ultimamente se tem passado em algumas localidades de Goa, da nossa formosa e pacífica Goa! Não é uma revolução aberta, ostensiva, de braços que lutam; é uma revolta recalcada, subterrânea, de mentes que se envenenam!
Como se chegou a esse estado, que de um momento para outro ameaça subverter o nosso estatuto político e promover a desintegração de Goa da Comunidade Portuguesa, para a integrar na grande índia? Quais são as consequências que nos adviriam dessa integração? Eis os pontos que muito sobriamente tentarei expor à Nação do lugar que ocupo no seio desta Assembleia.