29 DE NOVEMBRO DE 1946 19
No meio intelectual indo-português estabelecido na Índia Inglesa, aos primeiros momentos de pasmo segue-se um desalentado desapego aos velhos laços que os prendiam à terra e à cultura dos seus avós. Hoje em dia, só uma minoria, constituída sobretudo pela geração velha, se mantém francamente, devotadamente, portuguesa.
No seio dos emigrantes, que constituem a grande massa dos mesteirais e de indivíduos de mediana cultura e que em larga escala haviam seguido para a índia Inglesa, atraídos pelos fabulosos salários do período da guerra, a acção foi mais dissolvente ainda. For exemplo: desvalorizou-se a rupia inglesa relativamente à rupia portuguesa? Quem foi explicar ao povo que era esse um fenómeno natural, inverso da desvalorização da nossa rupia anteguerra, e devido em primeiro lugar à inflação da moeda inglesa e em segundo lugar ao dumping com que as notas inglesas, abarrotando as bolsas dos emigrantes pela alta dos salários aí auferidos, inundaram a nossa terra, sem cobertura equivalente por parte do Banco Inglês? Quem lhes explicou que era essa desvalorização que dera lugar ao açambarcamento da nota portuguesa por parte dos especuladores «no mercado negro»?
Da nossa parte, a dementada superioridade do silêncio! Da parte adversa, insidiosamente e malèvolamente, só se lhes fez ver que 100 rupias mandadas da índia Inglesa para as famílias em Goa valiam 90 ou ainda menos; que, sendo as nossas importações mais essenciais - arroz, farinha, fazendas - pagas com o dinheiro inglês do nosso erário, depositado nos bancos ingleses, não se compreendia que se exigisse ao consumidor o pagamento desses géneros em moeda portuguesa, para adquirir a qual o pobre tinha, por falta de uma valência oficial afixada nos postos da fronteira, de recorrer ao «mercado negro», ao ágio, por vezes, de 14 por cento! E o pobre, faminto e revoltado, na sua filosofia simplista, não achou outra derivante que a de clamar, com gáudio dos quinta-colunistas: «Que espécie de Governo é o nosso?».
Houve momentos em Goa em que o povo sofreu fome, por falta de géneros e por má distribuição por parte dos encarregados do serviço, e os mais humildes resolveram o problema emigrando em massa para a presidência de Bombaim, onde o racionamento dos géneros era regular e bem sistematizado.
Quem lhes explicou que a nossa quota de arroz e de farinha dependia do governo vizinho, que, conquanto no-la não recusando - e é meu dever manifestar publicamente a nossa gratidão ao governo, da índia, que com a sua generosidade tanto nos valeu nos piores tempos de crise e espero continuará a valer-nos no futuro -, lutava com dificuldades de abastecimento e de transportes para a sua própria população ? Sou médico, e todos os médicos que me ouvem sabem que em casos reputados incuráveis uma palavra amiga de conforto é, pelo menos, meio caminho para a esperança que nunca abandona a alma humana!
Pois na nossa terra, numa falsa compreensão de prestígio da autoridade, tratou-se com desdenhosa rudeza as bichas dos pedintes, e esse tratamento serviu de base à insinuação dos propagandistas - insinuação já hoje arraigada no seio de famílias nossas em Bombaim, mesmo de cultura mais que mediana, de que, já, que para viverem era necessário ir buscar o pão à índia Inglesa, seria melhor ingressar nela de vez! E essa doutrina logrou jubiloso acesso nos altos meios nacionalistas indianos, a esse tempo em plena e triunfante propaganda revolucionária.
Aproveitou-se das mais pequeninas coisas para uma propaganda dissolvente. Ao abrigo do decreto para a protecção do livro português, taxava o empregado nas alfândegas em serviço nos correios 10 ou 12 tangas por um livro escolar que um estudante em férias em Goa esquecera no colégio e mandava vir pelo correio? Seguia o estribilho: que espécie de Governo é o nosso?
O mal, por exemplo, que nos causou a receita de 12 tangas pelas fórmulas impressas para a declaração das bagagens, em vigor em todo o território português! Porque na índia vizinha essas fórmulas são gratuitas.
Ouvi eu a massa do povo nas docas da Bombay Steam Navigation Company clamar: ora vejam, um papel que nem custa 3 réis! Isto é um roubo! Deveis saber que centenas de goeses regressam diariamente à terra, para um mês de férias! Muitas 12 tangas terão entrado nos nossos cofres, mas o mal que essas tangas nos causaram foi irremediável!
Essa propaganda venenosa infiltrou-se em Goa, invadiu algumas escolas inglesas e maratas que aí preparam os nossos filhos para a luta da vida na índia e África e em algumas das quais havia professores estrangeiros francamente nacionalistas, apossou-se de cérebros novos, sempre inflamáveis e explosivos na sua irresponsabilidade, e assistimos a esse espectáculo degradante de se convidarem para a nossa terra sagrada estrangeiros indesejáveis para pregarem às massas a indisciplina e a desobediência civil, por entre cortejos em que nem houve a coragem de saírem à frente indivíduos que se impusessem pela sua integridade moral e intelectual, mas acrobatas encapotados, mandando fazer paradas de crianças das escolas, em geral, raparigas hindus algumas de menos de oito anos de idade!
E não hei-de eu - cidadão, pai e educador - lamentar no meio de vós essa -perdoem-me!- indignidade de terem querido conspurcar com a baba da peçonha a alma em botão da infância do meu país! Que penitência, que peregrinações - Lourdes, Fátima, Benarés - são capazes de redimir esse horrendo crime que cometeram?!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas, Sr. Presidente, todos esses «eventos de ordem interna» são fenómenos intercorrentes sem importância, passíveis, quando muito, ocorrendo no nosso País, de uma acção policial inteligente mas resoluta. Muito mais graves são as consequências de que tratarei nesta segunda parte e que englobarei sob o título de «eventos de ordem externa».
Mais que nunca, as minhas palavras têm de ser calmas e ponderadas. Tenho de lhes refrear o ímpeto, mesmo para retorquir com dignidade ao ímpeto com que da outra banda nos investem.
E por isso, e para que ninguém me atribua exagero ou paixão, documentarei com textos transcritos ipsis verbis, e que peço sejam registados no Diário das Sessões, as afirmações que faço.
O povo na metrópole desconhece a força do movimento que domina as massas da grande índia. A nossa imprensa metropolitana tem-se ocupado muito pela rama da convulsão política e social que ameaça ruir a personalidade da índia Portuguesa por um simples e inglório fenómeno de absorção que a imprensa indo-britânica de todos os matizes preconiza pela boca dos seus leaders e que a imprensa vernácula, una você, exige para a soi-disant unificação da índia livre.
O momento é grave e seria para estimar que o Ministério das Colónias tomasse medidas para que o governo de Goa, pelo seu serviço de informações, enviasse ao Ministério, diariamente, por mala aérea, recortes de alguns jornais anglo-indianos - Times of índia, de Bombaim, Statesman, de Calacutá, Hindu, de Madrasta - e de um ou outro jornal extremista que pusesse a nossa imprensa da metrópole em contacto com o que se passa aí, seja no tocante a Goa, seja sobre a evolução da própria política indiana. Temos de lutar unidos em frente