18 DE DEZEMBRO DE 1946 N.º 189
O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: a Universidade Portuguesa está de luto e com ela toda a cultura nacional.
No dia de ontem morreram dois ex-reitores de Universidades: faleceu no Porto o professor de Química, e durante longos anos reitor da Universidade portuense, .Dr. José Pereira Salgado e, poucos horas depois, em Coimbra, o Prof. Dr. João Duarte de Oliveira, que durante muitos anos foi também reitor da velha Universidade coimbrã. Um e outro desempenharam, embora transitoriamente, funções parlamentares, porque foram Procuradores à Câmara Corporativa, onde e pertenceram à secção dos Interesses morais, culturais e espirituais, em representação das Universidades.
Conheci pouco o Prof. Dr. João Duarte de Oliveira, mus do convívio curto que com ele tive e da sua tradição recolhi a impressão de um homem bom, de uma pessoa cheia de qualidades morais e afectivas, de uru homem cheio de bonomia e de integridade de carácter. Regeu longos anos na Universidade de Coimbra, na sua Faculdade de Medicina, a cadeira de Fisiologia.
Veio para essa Universidade depois de ter exercido a clínica rural no Alentejo, e ali permaneceu até ser atingido, há poucos anos, pelo limite de idade. Exerceu várias funções públicas.
Ninguém deixou de encontrar na carreira académica o pedagógica do Prof. Dr. João Duarte de Oliveira qualidades que fazem jus à gratidão de todos os que neste País se interessam pelo progresso e prestígio da cultura e do ensino.
Ao Prof. Salgado conhecio-o, ao contrário, desde a minha mocidade. Há quarenta anos, quando eu frequentava as cadeiras de Química da Antiga Academia Politécnica do Porto, já Pereira Salgado era assistente do grande professor Ferreira da Silva, do eminente químico português, e algumas lições recebi do saudoso colega agora desaparecido.
Mais tarde encontrámo-nos como membros do corpo docente da mesma Faculdade e tive o prazer e a honra de servir na minha escola sob o seu reitorado.
Recordo com alto apreço todo o entusiástico esforço dado por Pereira Salgado para o prestígio da Universidade do Porto por ocasião dos centenários da Academia Politécnica e da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, e mais tarde, por ocasião das comemorações centenárias da fundação e restauração de. Portugal, José Pereira Salgado esteve sempre no seu posto com entusiasmo e dedicação sem limites, que pude apreciar muito de perto.
Ele pertencia, Sr. Presidente, ao número daqueles homens que se filiavam na velha escola portuense de Química de que foi chefe eminente e prestigioso o professor Ferreira da Silva.
Recordo também aqui neste momento este mestre insigne que tão altos serviços prestou à Nação. Recordo a sua acção brilhante, no ponto de vista científico e no ponto de vista moral, por ocasião de um processo criminal célebre.
Recordo a defesa benemérita que ele fez dos vinhos licorosos do Douro, do bom nome dos vinhos do Porto, uma das grandes riquezas nacionais, quando se debateu no estrangeiro a célebre questão da salicilagem desses vinhos.
Evoco com saudade o tempo em que ainda estudante, frequentava, não só os laboratórios da Politécnica, mas o próprio laboratório municipal de Química, hoje extinto, que teve por chefe e fundador o grande químico Ferreira da Silva.
Ali encontrei um convívio que nunca, esqueci. Além do mestre de todos estou recordando de um modo especial, a convivência daquele que desapareceu agora, deixando em funda saudade todos os que o conheceram.
Foi ali que primeiro estive em contacto cardeal, com Pereira Salgado. Depois fomos colegas na mesma Faculdade e sempre verifiquei que de cia um digno discípulo de Ferreira da Silva.
Nele aliavam-se, como em Ferreira da Silva aliança do que muitos pretendem em vão contestar o fundamento -, a Fé e a Ciência. Eram, Salgado e Ferreira da Silva, simultaneamente homens de ciência e homens de fé.
Tenho uma recordação emocionada das manifestações repetidas da bondade extrema de Pereira Salgado, o qual nas funções de comando, nas funções de chefia que lhe foram entregues, ou seja, na reitoria da Universidade do Porto, afirmou incessantemente, para com colegas e para com estudantes, essas qualidades de bondade nata.
Mas a sua bondade nunca chegou às transigência, às complacência» que deslustram e que roçam, por vezes, pela deslealdade e pela traição.
Era um homem leal, um homem de um só rosto, um homem digno, um homem de bem.
Trabalhou muito, foi um analista distintíssimo, um grande trabalhador, e a homens destes, a homens desta qualidade, aplica-se o pensamento de Mantegazza, quando dizia que os indivíduos laboriosos são os verdadeiros valores de uma nação e que os outros são parasitas, são devedores insolventes. Com pleno direito, Pereira Salgado inscrevia-se no número glorioso e prestante dos primeiros.
Bondade, modéstia e simplicidade eram as características de Pereira Salgado. Tive ocasião de o apreciar no seu convívio familiar.
Evoco na família a que ele se ligou por laços de afinidade figuras de tão grande prestígio intelectual neste País como as de Alberto de Oliveira, Agostinho de Campos, já desaparecidos, e Antero de Figueiredo, felizmente ainda vivo.
Sr. Presidente: estou recordando também congressos e conferências internacionais em que Pereira Salgado tomou parte e em que era querido pelos seus colegas d« todos os países. Ainda não há muitos meses, numa Universidade estrangeira o respectivo professor de Química me falava com apreço e com simpatia do Prof. Pereira Salgado, de quem pedia notícias.
Sr. Presidente: num campo santo da Itália há um fresco de Orcana que se intitula O Triunfo da Morte. E bem verdade, Sr. Presidente, que a morte acaba sempre por triunfar, mas nem tudo desaparece com ela; ficam sempre as recordações verdadeiramente perduráveis das personalidades distintas, ficam os espíritos gentis daqueles que merecem essa sobrevivência, e pode dizer-se do homem aquilo que disse o grande Pascal: «Que é o homem no Mundo? Um nada em face do infinito, o infinito perante o nada, um meio termo entre nada e o infinito».
Pois bem, estou pensando no prazer com que ainda, algum tempo depois de Pereira Salgado ter atingido o limite de idade, eu cruzava com ele nos corredores c átrios da antiga Academia Politécnica. Não mais o verei, não mais o veremos por lá.
Quando num dos próximos dias deste inverno glacial eu voltar ao Porto, à minha querida terra, e for à antiga Academia Politécnica, encontrarei lá a menos a sua presença, o calor da sua amizade, do seu afecto e das suas virtudes, e encontrarei a mais um grande vácuo, mais frio e as flores desfolhadas de uma enorme saudade. Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi muito cumprimentado.