15 DE JANEIRO DE 1947 247
Evoco o ensaísta, o etnógrafo, o filólogo, o folclorista das Missangas, o autor de ensaios como aqueles que estão reunidos nesse belo volume, relativamente recente, que se intitula Maios e Estevas.
Recordo o biologista, o médico-legista, o professor de higiene e de medicina legal que escreveu tratados destas disciplinas e que elaborou na sua linguagem fluente, cintilante, maravilhosa, as belas páginas desse volume, que teve numerosas edições, que se intitula Criminologia; mas, Sr. Presidente, esse homem, cuja bibliografia foi vastíssima, multiforme e brilhante, esse homem não teve talvez uma verdadeira filosofia nas suas obras, em que se mistura o idealismo e o positivismo, o romantismo e o realismo, a espiritualidade e a sensualidade. A sua verdadeira filosofia era a sua lusofilia, um amor inabalável de todas as horas e de todos os momentos pela sua ascendência étnica, pela sua origem portuguesa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Afrânio Peixoto é o camonianista insigne, que escreveu numerosas obras sobre o nosso épico, e é um dos principais agentes do culto camoniano no Brasil, e foi sempre, em todas as horas, um dedicado amigo de Portugal e dos portugueses. Ler a sua História do Brasil é ler uma apologia entusiástica dos esforços, da dedicação e dos sacrifícios dos portugueses nas terras de Santa Cruz. Uma frase do historiador inglês Southey que ele repete: a O Brasil foi e será sempre uma herança portuguesa".
Mas ler as páginas calorosas, empolgantes, das suas Viagens na Minha Terra (referia-se a Portugal) é ler o mais fulgurante hino à nossa Pátria, à nossa terra, à nossa gente.
Desembarcou aqui, em Lisboa, e ao desembarcar disse: "Em Lisboa eu recuso-me a ser banal. Porque ali, aquele rio, o Tejo, se abre sobre o Oceano, por ele saindo e reentrando a glória de Portugal!".
E, depois de ter visto o nosso País, em jornadas dalgumas das quais guardo a saudosa recordação da sua companhia, as suas palavras são de constante elogio às coisas belas da nossa tradição e da nossa arte, são um elogio constante ao Minho, ao Douro, ao Algarve, a Trás-os-Montes, a Lisboa, ao Porto, a Coimbra, a Braga, a Évora, a todos os nomes e recantos gloriosos ou agradáveis de Portugal, aos mais modestos e humildes lugares da nossa terra.
Dizia ele, falando das mulheres de Aveiro, do Ílhavo, de Ovar e da Nazaré: "Implicitamente rezo uma oração a Deus por ter dado esta moldura de céu, de terra, de mar, de verdura, de sol, de tanta coisa bela, a estes palminhos de cara, a estas esculturas vivas, a estas mulheres nadas e criadas no mais lindo Cantinho de terra do mundo - Portugal!".
Sr. Presidente: acompanhei-o na sua visita à velha citânia do Briteiros, em devoção comum pelas raízes mais profundas da Pátria Portuguesa.
Acompanhei-o a Aveiro, a Viseu, a Braga, a Guimarães e na minha terra, no meu querido Porto, no qual ele percorreu todos os recantos que podiam guardar uma recordação, uma lembrança, um aspecto de beleza, de emoção ou de glória.
Tenho nesta ocasião uma saudade imensa, amargurada, ao recordar esses momentos inesquecíveis.
Fui com Afrânio Peixoto a S. Miguel de Seide. A propósito dessa visita escreveu ele páginas admiráveis, que estão contidas nas Maias e Estevas. E, ao mesmo tempo que neste livro defendia o português, defendia o brasileiro; ao mesmo tempo que condenava a brasilo-fobia de Camilo Castelo Branco, esse grande génio das nossas letras, fazia a apologia entusiástica dessa figura do hagiológio, da lenda e da Pátria que é Santo António de Lisboa.
Não mais o encontraremos, nós os portugueses, acolhedor, afável, hospitaleiro, sorridente, íntimo, familiar, nesse pórtico grandioso e admirável do Brasil, cercado de tanta beleza paisagística, a serra dos Órgãos, o Pão de Açúcar, a ilha de Paquetá, de tanta riqueza e esplendor, como é a linda baía de Guanabara, verdadeira apoteose natural da criação divina.
Nunca mais o teremos lá, a acolher-nos hospitaleiramente, nunca mais nos tomará do braço e nos acompanhará ao Petit Trianon, à Academia Brasileira do Letras, onde era uma das figuras mais destacantes. Não mais irá connosco a esse recinto já secular, sagrado para os portugueses, pedaço da nossa Pátria, que é o Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, em que se guardam tantas evocações da grandeza e da história dos dois países.
Esse Gabinete Português de Leitura chegou a ser, antes do Petit Trianon, a sede da Academia Brasileira de Letras, e, em sinal de gratidão, o grande Machado de Assis doou-lhe o original de uma das suas peças, que tinha o título simbólico de Tu, só tu, puro amor! Era como que a consagração simbólica, não de luta, mas do amor entre dois povos, do amor que fez a grandeza do Brasil.
Nunca mais o veremos na sua casa tão hospitaleira e tão distinta, nessa rua orlada de palmeiras que é a de Paisandú. Nunca mais o veremos em Petrópoïis, nessa cumeada que é um tão belo jardim de hortênsias. Nunca mais!
Recordo que numa das minhas jornadas ao Brasil fui com ele ao cemitério de S. João Baptista assistir aos funerais de uma grande figura da medicina brasileira, que era também uma notável figura da deontologia, o Prof. Miguel Couto.
Fomos de braço dado. Lá estivemos nessa jornada de devoção, e anoitecia quando, depois de um discurso de Aloísio de Castro, os dois retirávamos; como por magia acenderam-se num sem-número de campas daquele cemitério imensas luzes.
Era uma inovação para mim. Nunca tinha visto espalhadas pelas campas e jazigos lâmpadas eléctricas com tamanha profusão. Talvez houvesse uma mistura de paganismo e devoção cristã nessa exuberância de luzes. Pareceu-me tudo mais festivo do que fúnebre. Pareceu-me que esse cemitério era um campo luminoso de almas.
Evocando tão maravilhoso quadro, recordo os versos nostálgicos de Gonçalves Dias, um grande poeta brasileiro, cantor do indianismo:
Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores.
Sr. Presidente: eu não vim aqui fazer um elogio fúnebre, e creio mesmo que será mais grato à alma de Afrânio Peixoto - essa alma gentil que nos escuta, essa alma que viverá sempre entre portugueses e brasileiros- não palavras de pesar, de tristeza, mas sim um cântico de alegria, de vida e de fé. Eu creio, Sr. Presidente, em "Dom Portugal", como Afrânio Peixoto chamava a este Portugal eterno, que se reintegrou na trajectória dos seus destinos gloriosos.
Creio no Brasil, nesse pais maravilhoso e polimorfo, nessa terra esplêndida e exuberante de vida e de riqueza em que a natureza nos aparece sob os aspectos mais variados, as florestas do Amazonas e do Mato Grosso, as catingas do Nordeste e do Ceará, os sertões imensos, as savanas gaúchas do Sul, creio na sua gente, nas suas realizações industriais, agrícolas, pecuárias, nas suas extraordinárias possibilidades e perspectivas, as mais