13 DE MARÇO DE 1947 811
Por certo sou, em história, um leigo, mas entendo que incumbe ao Estado estabelecer uma base irrefragável de disciplina, um ponto de partida de cultura, um repositório cuidado de fontes, para que os mitos não obscureçam a verdade, as concepções singulares e singularizadas não desvirtuem a objectividade, a improvisação não derrote o estudo e a reflexão.
O conhecimento do passado há-de servir para bem mais do que satisfazer uma curiosidade intelectual, ou apurar o estilo, nos costumes e formas dos nossos maiores - há-de fornecer-nos a sobrevivência das tradições e dos institutos, mostrar-nos a continuidade, encarreirar-nos, lógica e conscientemente, para os tempos futuros.
Se não quisermos estar desarmados ou inocentes perante o dever ser nacional, se não pretendermos correr todos os riscos e suportar todos os prejuízos, havemos de dispor de uma cultura rigorosa e disciplinada do passado, que nos permita um conhecimento exacto e imparcial, premissas sobre o homem, a família, o clã e a sociedade que nos permitam um remate segura sobre a vida nacional.
Reporto-me a um problema que não posso apodar de clássico, nem tão-pouco deixar de o reduzir a simplesmente técnico.
Reporto-me ao ensino oficial da História Económica.
Mas tenho de pedir vénia, por me falhar a autoridade e até mesmo o conhecimento perfeito do problema de cultura que está posto ao pensamento e à acção dos portugueses.
Tenha paciência V. Ex.ª, Sr. Presidente, que eu meta foice na frutuosa messe de outrem.
Aqui nesta Câmara, no tempo de José Estêvão, sentou-se o severo e ínclito Herculano e o dramaturgo da história; Oliveira Martins bebeu até às fezes o cálice do seu drama político, que foi também o drama do País.
Lá baixo, lá baixo, na Torre do Tombo, brilham para a eternidade as firmas luminosas dos nossos cronistas e eruditos, cuja teoria arrebatadora acompanha a herança dos nossos fastos.
A nossa historiografia dispõe de talentos bastantes, que sabem avivar o que já se chamou a linha clássica da cronologia da seriação dos acontecimentos, os quais ilustram e exalçam as páginas iluminadas, onde o facto político e a vida dos grandes homens exercem o primado incontestável, no relato do passado.
E eu não sei que viver haja mais nobre do que consagrar a vida ao estudo do passado!
Mas a história, nos seus moldes tradicionais, alenta-se das instituições, aviventa-se em alguns homens descomunais e pode degenerar, singelamente, em cronicon aristocrático ou em narração de intrigas palacianas, quando lhes falece o esforço sobre-humano de organizadores, combatentes ou descobridores.
A sucessão das batalhas ou os anais da realeza requereram entre nós de «tuba canora belicosa» e gente capaz de levantar o montante de Afonso, O Bravo, ou reverenciar, por largo, com o velho chapéu do conde da Ericeira.
Mas esta história clássica, chamemos-lhe assim, carece ser seguida, aperfeiçoada, completada pela história económica, aquela que nos mostra, que nos dá a evolução da riqueza em Portugal, ou, melhor, o longo e árduo processo temporal da nossa mediania - direi melhor, a história de João Ninguém. Uma história plebeia, somenos elegante, comezinha, quotidiana, que nos pinta e nos esclarece sobre o homem real, vivo, dinamizado, com uma psicologia quase universal, mas firmado à terra ou encastoado na sua nave, circulando, labutando, combatente obscuro do desfavor natural.
E esta é uma história gata borralheira, que segue a cauda da história emplumada e que leva consigo a sociologia do passado, os vários e sucessivos balanços da riqueza nacional, os cálculos económicos - as pequenas misérias da vida de todos os dias!
Uma história que completa a secura e o isolamento de certos estudos sociais!
Uma história que, lançando raízes nas certezas do passado e do presente, permite a antecipação lógica do futuro!
Uma história que apenas requer «agreste avena ou frauta rude», anãs que sem ela não existe hoje explicação social perfeita nem filosofa completa possível!
Portanto, um estudo, uma investigação, uma conclusão que nos ajude a ligar a experiência do passado à solução lógica dos problemas presentes.
Quer ver V. Ex.ª, Sr. Presidente: em todo o Mundo, hoje, é grave questão de planificação e de planos, mais ou menos constritores da liberdade económica. E, todavia, D. Fernando I e o marquês de Pombal planificaram com largueza e outros estabeleceram planos que houve de cumprir rigorosamente, à risca.
Seja-me permitido - pois não me demorarei - fazer um tour de horizon pelo vasto campo internacional do historismo económico para tirar dali a lição indispensável.
Começarei pelo seminário de investigação que trabalha na Universidade de Harvard, onde jovens investigadores americanos, perfeitamente dotados, estão chamando a si, dissecando-os, agrupando-os, ensinando os testemunhos sobre preços e salários quinhentistas de Valência, Aragão e Navarra; sobre o comércio antigo do cereais na França, sobre o Tesouro americano do século XVI; sobre a vida da cidade de Boston; sobre as flutuações de negócios de há dois séculos a esta parte; mostrando que a «carolice» dos estudiosos, aliada à exuberância de meios, verdadeiramente americana, podem ensinar a licito europeia no novo Mundo com tanto vigor como no velho continente, que guarda ainda os seus arquivos.
Deverei referir-me à constelação de primeira grandeza que tão alto ascende no firmamento da cultura britânica, começando por Cunningham, professor de um colégio da Universidade de Cambridge, que implantou ali este ramo de conhecimento, consagrando-lho uma vida longa e levantando os famosos monumentos sobre a história da indústria e do comércio.
Eileen Power, uma professora perfeitamente elucidada, que a morte arrebatou prematuramente.
Tawney, que miudamente discreteia sobre as infiltrações recíprocas do espírito protestante e do capitalismo.
Lipson, o nome glorioso deste momento, levantando a sua notável História Económica da Inglaterra.
Ninguém mais perfeitamente dotado, dispondo de completa e exuberante documentação, a um tempo ligeiro e penetrante, rico de vistas e conceitos como este Lipson, que pertence à rival Oxford e que pôde levar até ao fim uma tarefa destinada a suplantar uma vida beneditina!
Mas foi na Alemanha que teve berço a velha escola de Roshër, o primeiro que ligou a história à economia e ao direito; de Hildebrando e de Knies.
E a chamada jovem escola que considera os fenómenos económicos como variáveis no tempo e no espaço, onde pontificou o socialista de cátedra Schmoller e onde dominava clamorosamente o titã Sömbart, capacidade espantosa de erudição, investigação e interpretação psicológica, cuja grande obra, o Apogeu do Capitalismo, será a mais profusa apologia dos processos de enriquecimento e distribuição dos últimos tempos.
Deixo a França e salto à Itália, para não roubar nem o tempo nem a paciência, mas hei-de referir-me a Henri Pirenne, fundador da escola belga, muito colado aos