24 DE MARÇO DE 1955 645
activar e coordenar a intercultura luso-britânica, oferecendo nos dois Países novas oportunidades de colaboração L- de convivência. Quando, há cerca de vinte e cinco anos, a Liga de Genebra, na convicção de que os acordos políticos e económicos não bastavam como instrumentos da segurança colectiva, instaurou a sua política de cooperação intelectual - deslumbrante movimento de iniciativas e de ideias a que não se prestou ainda inteira justiça -, produziram-se algumas objecções, mais brilhantes do que sólidas, respectivamente à eficácia dos métodos adoptados. «Os acordos intelectuais entre os povos - disse-se - são inúteis porque os povos não são intelectuais». Houve quem acrescentasse: «A inteligência nunca serviu para unir os homens; dividiu-os sempre». E Julien Benda, o mestre de paradoxos da Trahison des Cleres, lançou sobre as primeiras actividades, um pouco bizantinas, do Instituto do Palais Royal o seu terrível balde de água fria: «Para quê aproximar os povos, se eles se odeiam tanto mais quanto melhor se conhecem?» Hoje, estas atitudes negativistas e críticas deram lugar no 'mundo ocidental - único actualmente permeável à política da cultura - n uma relativa confiança nos princípios e nos métodos da cooperação intelectual, de que se tornou instrumento magnífico, sob a égide da O. N. U., a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - a Universidade da Rua Kleber-, herdeira rica da antiga 'Comissão Internacional de Cooperação Intelectual de Genebra, a que outrora presidiram Bergson e Einstein. Essa confiança justifica-se. A cultura, por definição «o culto dos grandes valores humanos», não se realiza plenamente como facto nacional restrito, mas como fenómeno ecuménico, como expressão da consciência, não apenas de um povo, mas - já o dissera em 1612 o grande Francisco Suarez no seu tratado De Legibus - da (comunidade jurídica e humana dos povos, como unidade universal». Desenvolver internacionalmente a cultura é fortalecer essa consciência. Deixá-la confinada em nacionalismos fechados, irredutíveis e hostis é, inevitavelmente, favorecer e apressar as graves crises de depressão geral que os filósofos - o americano Gettel e especialmente o russo Berdiaeff no seu livro A Nova Idade Média - interpretam como expressões de involução e de regresso da Humanidade u barbárie e ao caos. Não se pede, evidentemente, as massas que colaborem, mas que colaborem as elites, minoria condutora das nações. Mais do que os tratados que regulam os interesses políticos e económicos - fórmulas jurídicas de equilíbrio, cristalizações instáveis-, os acordos intelectuais (e, designadamente, os acordos culturais, de mais vasta projecção) destinam-se a trabalhar profundamente a alma dos povos livres. São instrumentos de informação, de compreensão, de benevolência, de convívio-e, portanto, instrumentos de paz. Com fundadas razões a U. N. E. S. C. O. observa, nas palavras em que definiu o seu objectivo essencial: «Tratemos dos espíritos, porque é no espírito dos homens que as guerras começam». Compreende-se que certas potências procurem, por meio de acordos intelectuais, bilaterais ou multipartidos, cimentar a obra da segurança colectiva. Precisarão, porém, de o fazer duas nações como Portugal e a Grã-Bretanha, que desde 1386 permanecem inalteràvelmente fiéis ao primeiro tratado de amizade e auxílio que assinaram e que, unidas perante as dramáticas vicissitudes de seis séculos de história, com justificado orgulho se proclamam os mais antigos aliados do Mundo? Cremos que sim. E vamos ver porquê.
3. Aos observadores políticos sempre parecem dificilmente explicável que dois povos, ligados por uma aliança ininterrupta de 570 anos, convivam tão pouco
e se interessam tão limitadamente uni pelo outro. Não obstante, os eruditos e os estudiosos têm-se referido às relações existentes, ,no decorrer do tempo, entre homens cultos dos dois países e às obras literárias e científicas de mútuo interesse .por eles publicadas. Veremos adiante o mérito dessas referências. Como quer que seja, porém, temos ide reconhecer - e ninguém o contesta - que, devido a razões de ordem étnica, psicológica, religiosa e linguística, de sua natureza irremovíveis, e a erros de educação que chegaram até nós (negligência no ensino das duas línguas), a capacidade de compreensão e de comunicação entre ambos os povos não é, infelizmente, aquela que poderia esperar-se de uma tão longa e gloriosa amizade. A aliança inglesa, como abreviadamente lhe chamamos, constitui facto singular - pode afirmar-se único - na história política e diplomática das nações. Como tal tem sido largamente discutida nos países interessados e fora deles. Discutida pelos historiadores; discutida pelos homens de Estado; discutida pelos economistas (quanta tinta se gastou a comentar o tratado de Methwen de 170$, mais vantajoso para nós do que pretendeu fazer-nos acreditar a política francesa!); discutida pelos mestres do direito internacional, alguns dos quais, cá e lá, consideram inactual e demasiado fluida a armadura jurídica da aliança. Debilidade dos textos; pouco conhecimento mútuo dos povos. E, entretanto, nunca em qualquer tempo a aliança foi invocada por uma das partes, que a outra não acudisse, sem sombra de hesitações, ao seu apelo. Porquê P Porque a aliança luso-britânica não está apenas na letra dos tratados; está no instinto profundo das nações. É uma tradição que mergulha as suas raízes em seis séculos de história. Não será indispensável, como já se pretendeu, actualizar a sua expressão jurídica. E, porém, necessário fortalecer a aliança como sentimento; tornar mais viva a consciência desse e dogma histórico» (como lhe chamou o marquês de Soveral) na alma colectiva dos dois povos. O Prof. Hui-zinga, reitor da Universidade de Leiden, presidente da Academia Neerlandesa, consagrou uma verdade quando afirmou Já vinte anos em Genebra: «Há velhas nações amigas que mão têm pressa de se conhecer». Esta observação subtil ajusta-se como uma luva ao caso da Grã-Bretanha e de Portugal. O fortalecimento moral da aliança exige entre os dois povos um convívio mais íntimo, lima comunicação mais fácil, uma riqueza maior de informações recíprocas, um contacto mais frequente e mais directo, uma mais perfeita comunhão das juventudes -universitárias e escolares. Noutro tempo, o pouco que conhecíamos um do outro nos bastava. Encontrávamo-nos de século a século nos campos de batalha; combatíamos lado a lado; quando passava o perigo apertávamos fraternalmente as mãos e despedíamo-nos até à próxima guerra, deixando aos netos - quando Deus quisesse- o encargo de recomeçar ia epopeia interrompida dos avós. Agora, os tempos mudaram. As condições do Mundo são diferentes. É em volta do gigantesco bloco anglo-saxão que se organiza, pela força do Pacto do Atlântico Norte, a defesa do Ocidente. A guerra tem de pensar-se em inglês. Não basta, como nos prélios medievais, vestir as armas mo momento próprio. É preciso forjá-los em comum, trabalhar em comum longos anos, asperamente, incansavelmente-não já para vencer uma guerra, mas para unia empresa mais difícil ainda: para a evitar. A colaboração das espadas não é suficiente; temos de assegurar a colaboração dos espíritos. A Convenção Cultural entre Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, agora submetida ao nosso exame, é necessária e vem na hora própria.