3 DE FEVEREIRO DE 1936 425
Eu não quero contar casos justificativos deste receio do Dr. Rodrigues Cavalheiro para não ter de desenrolar perante VV. Ex.as uma tragicomédia cultural.
As bibliotecas e arquivos devem transformar-se de jazigos de livros em centros de actividade intelectual. Compete-lhes facilitar o trabalho dos estudiosos pela organização, bibliografias, preparação de exposições, publicação de documentos e de espécies raras.
Urge dar meios de trabalho à própria Inspecção Superior das Bibliotecas e Arquivos, para que ela possa ser alguma coisa mais do que um simples degrau para o expediente burocrático. Dentro de uma boa estruturação dos serviços cabe-lhe naturalmente uma ampla acção orientadora, fiscalizadora, coordenadora o até realizadora, que dificilmente pode ser preenchida por outros organismos.
Cumpre-lhe, além de inspecção, a missão do estudar e formular os processos e meios de defesa dos nossos livros e manuscritos; fomentar o intercâmbio entre os estabelecimentos dependentes dela; preparar sobre os catálogos particulares o catálogo geral das bibliotecas eruditas e o catálogo geral dos arquivos portugueses; organizar, com os elementos dispersos pelo Pais, bibliografias gerais e bibliografias especiais e mantê-las sempre actualizadas: fazer o inventário das raridades existentes nos próprios arquivos e bibliotecas particulares, onde há preciosidades de que a Nação se não pode alhear.
É preciso ainda estudar e organizar um serviço permanente e equitativo de permuta, pois não faz sentido que a mesma biblioteca pública tenha dois, três e quatro exemplares de uma obra rara que as outras bibliotecas não possuem, embora por sua vez tenham numerosos duplicados de outras espécies preciosas; uma redistribuição conscienciosa dos duplicados não só facilitaria a vida aos estudiosos mas representaria uma medida de protecção às nossas riquezas bibliográficas contra todos os riscos - guerra, incêndio, tremores de terra ...
Acresce que existem colecções incompletas e colecções dispersas que seria relativamente fácil completar ou reunir e que há, códices e mesmo documentos avulsos que, por dizerem respeito inteiramente à história de uma região, ficariam muito melhor integrados em bibliotecas diferentes daquelas a que por acasos da vida foram parar.
Sei que alguns destes problemas, e outros que não enumerei, preocupam seriamente o actual inspector superior, cuja competência e espírito de organização é de justiça pôr em relevo.
Com os meios, porém, que a Inspecção Superior dispõe hoje, por melhor vontade e sentido de iniciativa que haja, ela pode, quando muito, multiplicar relatórios com mais ou menos sugestões, ensaiar em escala minúscula alguns destes aspectos, resolver episodicamente alguns casos. Nunca poderá realizar uma larga e duradoura obra sistemática.
Para isso era preciso, além de uma dotação orçamental condigna, um corpo de bibliotecários-arquivistas e de outros técnicos especializados a trabalhar directamente com a Inspecção, que possui hoje, afora o cargo de inspector superior e outro, aliás vago, de inspector, apenas um melancólico quadro burocrático: um segundo-oficial, um terceiro-oficial e um continuo de 1.ª classe. Positivamente sem ovos não se fazem omeletas.
Pelo que diz respeito à situação dos conservadores dos museus e palácios nacionais o panorama não se mostra mais risonho. Também para estes lugares se exijo um curso superior ou o curso das Belas-Artes (que só não ó superior porque nunca se regulamentou a reforma que o Governo mandou à Assembleia Nacional, que longamente a discutiu).
Pede-se-lhes ainda mais aos que não forem licenciados em Ciências Históricas e Filosóficas uma série de cadeiras da Faculdade de Letras e, a todos, um estágio de dois anos com exame de admissão, exame de passagem do 1.º para o 2.° ano e exame final.
Nem ao menos se pode chamar gratuito a este estágio, pois só os estagiários nada recebem passaram, depois do Decreto n.º 39116, de 27 de Fevereiro de 1953, a pagar 450$ por ano... apesar das pessoas que normalmente os orientam não terem qualquer remuneração por isso. (Apenas o ano passado por uma verba inscrita no orçamento da Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes se pagaram à magra razão de 100$ as conferências e lições eventuais feitas por pessoas especialmente convidadas para esse fim, princípio que não sei se se repete este ano).
Finalmente, após o estágio sai-se conservador adjunto... sem vencimento. É apenas um bilhete de trânsito, uma preferência absoluta para as vagas sempre muito reduzidas que se derem nos museus ou palácios nacionais.
Se entram nos museus nacionais ou nos palácios (dois quadros autónomos e até dependentes do dois Ministérios diferentes) ficam com o ordenado equivalente a segundos-oficiais, mas com a desvantagem em relação a estes, pois os segundos-oficiais ainda podem ascender a primeiros-oficiais, ao passo que os conservadores dos palácios e dos museus nacionais não têm qualquer acesso.
Encontram o horizonte absolutamente cerrado, sem nenhum vislumbre de esperança. Em segundos-conservadores começaram, em segundos-conservadores terminarão a sua carreira, sem direito a qualquer diuturnidade...
Se concorrem aos lugares de directores dos museus de província, cristalizam também! Em Lamego, Bragança, e Aveiro ficam para toda a vida com o vencimento de terceiro-oficial (1.800$); em Guimarães de segundo-oficial (2.400$); em Coimbra, Évora e Viseu de primeiro-oficial (3.000$).
Já começa a ser difícil, por causa do angustioso regime económico, prover estes lugares. Antigamente eles eram desempenhados por estudiosos e curiosos locais, pessoas com outras ocupações e que, por isso, se contentavam com uma gratificação complementar e até, às vezes, com a simples honra do dirigir o museu da terra.
Agora, porém, há o cuidado de preparar tecnicamente pessoas para essas funções. Simplesmente, os técnicos, depois de uma longa preparação, não se podem entusiasmar com a perspectiva estreita de se fixarem numa cidade da província com 1.800$ de ordenado, para sempre.
Por isso, para o Museu Regional de Lamego foi preciso recorrer a um director interino, por ter ficado deserto o concurso para o cargo. Salvo o caso excepcional de haver alguém com outros interesses locais, nenhuma pessoa legalmente habilitada pretenderá estes cargos. Mesmo que os directores dos museus de província se resolvam a renunciar ao direito humano de constituir família, todo o sou magro ordenado não lhes chega para pagar o hotel compatível com a sua função.
O Sr. Bartolomeu Gromicho: - O director do Museu de Évora não tem vencimento ...
O Orador:-Esse ó um caso especial...
O Sr. Bartolomeu Gromicho: - Bem sei que esse director exerce o cargo de professor da Faculdade de Letras em Lisboa, mas desloca-se a Évora sem qualquer ajuda de custo.
O Orador:-Nos meios grandes, como Lisboa, ainda poderiam representar o papel de pobreza envergonhada e instalar-se numa pensão de 10.ª ordem, mas em meios