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3 DE FEVEREIRO DE 1956 429

Na custódia de Gil Vicente a alma de Portugal envolve o próprio corpo de Deus na espiritualidade da arte lusíada e sagra de divino o metal mais precioso das terras da Índia maravilhosa, refulgente de legendas e de pedrarias.

Vozes: - Muito bem
O Orador: - Transportada de avião, acompanhava-a uma preciosa porcelana chinesa ornamentada com a esfera armilar, que é das primeiras obras, senão a primeira, que os artistas da China aformosearam com um motivo europeu. Na sua viagem aéreo estas duas preciosidades foram decerto mais protegidas pela mão de Deus do que pela cautela dos homens!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Pelo que toca aos painéis, é inútil insistir sobre o significado que estes têm não só para o património artístico de Portugal como para a história universal da pintura. São eles o único monumento de pintura que impõe para a nossa pátria uma das primeiras posições no conceito internacional das artes pictóricas. Foi perante eles que a opinião insuspeita do ilustre crítico espanhol Beruete y Moret, ao tempo director do Museu do Prado, não só afirmou a existência duma "originalidade suprema" mas também a revelação de características individualizadoras não só duma arte pictural portuguesa mas ainda influenciadoras de toda a arte peninsular, incluindo a espanhola.
Também o grande pintor espanhol Vasquez Dias me afirmou há alguns anos que os célebres painéis representavam a expressão mais alta que a arte de pintar atingira em todo o Mundo.
Estas palavras, que então me pareceram mais ditadas pelo entusiasmo do que pela meditação, aparecem agora poderosamente confirmadas pelo crítico de arte e director-geral honorário dos Museus Reais de (Belas-Artes da Bélgica, Van Puyvelde, que afirmou que eles constituem uma das mais poderosas realizações da pintura quatrocentista, indo até afirmar que, «pela concentração e monumentalidade da concepção artística, ultrapassam o Cordeiro Míxtico, de Van Eyck», essa obra excepcional do indigitado inventor da pintura de cavalete, que tem sido unanimemente considerada como obra suprema da pintura flamenga e uma das mais notáveis obras-primas da pintura universal.
E aqui chegámos, naturalmente, ao ponto para que tendem as considerações que vimos fazendo. Elas vêm dirigindo-se no sentido de tornar fortemente sensível a necessidade de realizar reproduções fiéis das nossas obras-primas, fazendo-as copiar por pintores altamente especializados neste género de trabalhos, e de obter documentações o mais perfeitas possíveis, utilizando os processos físicos de mais apurada técnica - fotografia a cores ou colorida e diapositivos das obras pictóricas, modelações e fundições em bronze das esculturas de pedra ou terracota, reproduções das peças mais delicadas de ourivesaria artística, feitas com tasselos de substâncias plásticas macias de base gelatinosa.
Bem sabemos que dificilmente se podem obter por processos físicos e mecânicos reproduções que fixem a espiritualidade da pintura. Entretanto, será conveniente esclarecer que no Congresso de Paris de 1921 o Dr. José de Figueiredo apresentou, pela primeira vez, os painéis chamados de S. Vicente, exibindo-os apenas em projecções. E que, apesar de todas as insuficiências que se possam supor, o valor desta exibição foi suficiente para que alguns dos maiores nomes dos peritos internacionais - mestres insignes, como o grande Friedlander, da Alemanha, Salomão Reinach e Dieulafoy, de França, e Venturi, de Itália- reconhecessem unânimemente que as pinturas dos polípticos denunciavam a existência de uma escola portuguesa medieval caracteristicamente individualizada.
Dada, porém, a sua importância primacial, tanto estes painéis como todas as obras classificadas de valor excepcional deveriam ser reproduzidos em cópias manuais da mais perfeita fidelidade.
Tais cópias seriam confiadas a peritos, pintores que fossem simultaneamente especializados não só na arte de pintar mas também, imprescindivelmente, na análise dos pigmentos, óleos, vernizes e demais materiais tanto das pinturas como dos suportes e ainda nos processo usados pêlos pintores dos originais.
Esta ideia não deixará de provocar uma primeira reacção de descrença, por se considerar que dificilmente e poderão obter reproduções que fixem o fluido espiritual dos próprios autores dos quadros a reproduzir.
Não faltam, porém, as provas de como um grande artista pode realizar cópias de tal valor que cheguem a iludir os próprios especialistas mais subtis, como o fez esse extraordinário Van Meegeren ao produzir falsos Vermeeres, que foram tidos por autênticos por todos os peritos, e sobre alguns dos quais parece que vários críticos insistem ainda em reconhecer autenticidade.
Da perfeição e valor que podem atingir obras de artistas profundamente especializados temos ainda um impressionante exemplo no célebre Cordeiro Místico, de Van Eyck, por muitos considerado como a maior das obras-primas universais e a que há pouco nos referimos.
Ao deixarmo-nos invadir pelo místico sortilégio deste retábulo e ao sairmos da capelinha lateral da Catedral de Saint-Bavon, de Gand, com a imagem dos formosos painéis gravada na memória sensória! da nossa retina, mal imaginaremos (se de tal não estivermos anteriormente prevenidos) que o volante da esquerda - o que representa os Justos Juizes- foi pintado em 1939 por Van der Veken, por se ignorar o paradeiro do autêntico volante, misteriosamente roubado em 1934.
Um outro exemplo ainda, que nos toca particularmente como portugueses e que não posso deixar de evocar, porque nos coloca exactamente no ponto de vista que desejo tocar como corolário das minhas palavras:- existe em Florença uma formosa e riquíssima capela que ostenta as armas de Portugal no pórtico e nu abóbada. Foi mandada construir em 1460 pela infanta de Portugal D. Isabel, duquesa de Borgonha, junto à Basílica de S. Miniato ai Monte, para ali erigir essa formosíssima jóia de arquitectura e escultura sepulcral que é o túmulo do cardeal D. Jaime, filho de D. Pedro de Alfarrobeira.
Os maiores artistas de Florença colaboraram na construção e enriquecimento daquela obra-prima, desde o arquitecto Manetti, que fez a capela, até ao escultor Rosselino, que esculpiu os formosos mármores, ao filólogo e literato Polizziano. que redigiu as epígrafes, a Luta delia Robbia, autor dos medalhões de terracota policromamente esmaltados, a Botticelli, que lhe desenhou os paramentos, a Baldovinetti, que pintou os frescos, e a Pollaiolo, que pintou aquele formoso óleo dos três santos protectores do cardeal: S. Jaime, S. Vicente e Santo Eustáquio.
Pois bem: - este formoso quadro que actualmente ali se pode admirar não é o autêntico, mas sim uma admirável e fidelíssima reprodução. Porquê? Algum desastre atingiria o original? Não. Uma medida de precaução do Estado fez remover o painel para a Galeria dos Uffizi, substituindo-o por uma primorosa cópia. E. con-