28 DE JUNHO DE 1956 1205
me permitirei fazer algumas considerações, até porque só na medida em que ele se entendeu na sua verdadeira missão educativa e de ajustamento social poderá ser elemento útil da organização corporativa.
Tem-se até aqui considerado o serviço social entre nós como mero instrumento de prestação de assistência material, como elemento informativo de todos os aspectos da vida dos indivíduos e dos grupos, como odiosa organização de inquérito, que, por tudo e por nada. devassa, a todos os pretextos, a vida das famílias.
Encontrou-se nele uma maneira de rotular de «social» obras, empresas, organismos e serviços, comprometendo a sua doutrina e as pessoas que nele trabalham, pois que, em boa verdade, assim ele não é senão uma caricatura do bom trabalho social e unia camuflagem da justiça social e da autêntica caridade e ajuda ao próximo.
Tem-se mascarado de serviço social não só iniciativas que de social nada têm, como até algumas que chegam a ser instrumento anti-social nos fins e meios que empregam.
Datam de 1939 as primeiras iniciativas de serviço social em Portugal. Neste espaço de tempo, que foi de sobejo paia que tivesse sido conhecido e se tivesse imposto, reconhece-se com mágoa a sua deturpação e quase minimização. Este é ainda. Sr. Presidente, um reflexo da falia de mentalidade social que é o leitmotiv de que se fazem eco as propostas de lei agora em discussão.
Não quero deixar de confessar e que mo perdoem as minhas colegas assistentes sociais- que também nós temos sido culpadas de ter deixado chegar o serviço social a este estado, ao aceitarmos tarefas que não se coadunam nem com a sua doutrina nem com os seus objectivos. Temos, no entanto, uma atenuante, que é preciso declarar, em abono de verdade, e é a de que, apesar e contra tudo o que se tem exigido ao sois disant serviço social, se tem podido e sabido trabalhar com alma e técnica própria;.
Quais foram os golpes mortais que logo à nascença deixaram o serviço social exangue e quase em condições de sobrevivência? Respondo: o inquérito, a burocratização e o sentido utilitário que se deu ao serviço social.
Entregou-se à trabalhadora social como missão primária a de fiscal, de caridosa bisbilhoteira de informadora perspicaz. A certa altura chegou-se mesmo ao ponto de apreciar o rendimento da trabalhadora social pelo número de inquéritos efectuados ...
Graças a Deus este critério de apreciação desaparecer mas persistem ainda, como imediato e primário da actuação da trabalhadora social, o inquérito e a informação. Esta tem de ser redigida em boa prosa e melhor caligrafia, para que da vida das famílias assim fotografada se possa resolver positiva ou negativamente através dum despacho.
Não está certo que as, mais elementares concessões de assistência, as mais justas atribuições de regalias, os mais urgente socorros médicos, dependam de minuciosa discriminação da vida das famílias e dos indivíduos e de despachos superiores de membros do Governo, que têm si seu tempo o saúdo sacrificados aos sérios problemas nacionais. Temos de substituir este sistema de actuação social, que de social nada tem.
Objectar-se-á que os beneficiários ou os que se julgam com direito a auferir benefícios reclamam injustificadamente exageram as necessidades, numa palavra, pretendem servir-se ilegitimamente dos meios de que os serviços oficiais ou a.« instituições dispõem a seu favor.
Sendo assim, como é, de facto, e«tá então na base do problema uma questão educativa. Não será o inquérito
nem o questionário que vão criar uma mentalidade de honestidade e de verdade. Antes pelo contrário. Quem já tem tendência para mentir procurará, por este sistema, arranjar maneira de mentir melhor.
Estes os inconvenientes, além de outros, atentatórios da dignidade humana, provenientes da instituição do inquérito social.
Não quero com isto Sr. Presidente, negar a utilidade, a necessidade de informações sociais como base para prestação de assistência ou atribuição de benefícios. Não. Mas o que se condena é que, burocratizado e funcionalizado o sistema, se parta das instituições e serviços para o inquérito, e não do inquérito para as instituições.
Mais: se cabe ao servido social ser agente de ligação entre as instituições e os homens, quem melhor do que os agentes do mesmo serviço está apto a decidir sobre situações e problemas que eles- tão concretamente palpam, sentem e tão intensamente vivem que deles chegam mesmo a participar;' Há que dar, portanto, ao serviço social mais amplo poder de decidir e actuar, permitindo-lhe uma utilização mais imediata do meio de solução dos vários problemas que se põem às famílias e pessoas que se lhe confiam.
Com uma maior latitude deliberativa concedida assistente social e levando as instituições a serem coadjuvantes do serviço social - e não o serviço social, por meio do inquérito, auxiliar das instituições - evitar-se-ão muitos males, que trazem o descrédito à acção social e o mal- estar às famílias e aos grupos de trabalho e vida comunitária.
Lê-se nas entrelinhas e alíneas da proposta a salvaguarda deste princípio. Oxalá a sua aplicação seja uma realidade.
O segundo mal de que falei - a burocratizarão - é. em grande parte, causa u consequência do primeiro.
Foi o chamado «inquérito social» que levou ao estabelecimento de uma orgânica. Não nego a necessidade de que o Estado faça a coordenação do serviços sociais, em ordem ao bem comum e a um melhor rendimento dos serviços. Mas que se dê maleabilidade aos processos e às regras de agir. Quer dizer: que toda a legislação neste sentido suponha e exija um espírito de liberdade conscienciosa.
Aqui, é preciso dizê-lo. estamos já no bom caminho e oxalá u regulamentação da proposta de lei de largas a este espírito, que imprime aos servidos do Ministério do Interior - para só falar das que melhor conheço - uma característica que é incentivo para os que nele trabalham e exemplo paia muitos outros países.
Apenas uma palavra sobre o terceiro mal: o sentido meramente utilitário que se exige ao serviço social. O serviço social não serve serviços ou instituições. Está apenas ao serviço do homem. Servo, as pessoas. «E serve-as», como muito liem diz o Dr. Adérito Sedas Nunes, num magnífico trabalho sobre a Organização Corporativa e n Serviço Social», publicado na Revista do Gabinete de Estudos Corporativos não para nelas criar ou manter um estado de dependência; pelo contrário, o que procura ó torná-las independentes, capazes de enfrentar e resolver os seus problemas, de realizar um destino verdadeiramente pessoal.
Por uma caracterizarão negativa diríamos que o serviço social representa a rejeição categórica do paternalismo, sobretudo o paternalismo como sistema».
Ora, entre nós muito -.e tem sacrificado desta independência e isenção utilitária do serviço social, para prevalecer um melhor lucro para a instituição, um maior prestígio para os dirigentes.
Pode objectar-se que as instituições e organismos estão também ao serviço dos que delas beneficiam.