1270 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 163
O corporativismo português, já o afirmei nesta Casa, um pouco como definição caricatural, tem evoluído e oscilado entre um liberalismo eufórico de lucros e um estatismo, esponjando e nacionalizando prejuízos e burocratizando iniciativas. Não foi, decerto, essa a ideia basilar de Salazar, que queria a economia livre, na medida em que aproveitasse iniciativas fecundas, e corporativizada. nu proporção em que o esforço do conjunto valorizasse bem as nossas possibilidade» ou limasse dificuldades.
Esta proposta de lei, o seu próprio relatório e o magnífico parecer da Câmara Corporativa procuram evidenciar a capacidade orgânica do corporativismo na solução dos problemas nacionais fundamentais.
O corporativismo português não tem longas e seguidas tradições históricas. Poderíamos dizer, humoristicamente: se não tem história, tem pelo menos histórias.
Na história económica portuguesa vive um tanto a escala de um artesanato numa economia urbana medieval, e no pré-capitalismo, após os Descobrimentos, e no período capitalista que se lhe seguiu não foram as corporações que actuaram no conjunto económico lusitano, mas os organismos dirigistas, como a Casa da índia e outros. Nas cortes gerais não assumiram papel de predomínio, abafadas pelo prestígio das outras ordens. São tradições um tanto modestas, que nunca o poderiam impor na economia portuguesa.
Ràpidamente resumo as acusações que fazem à sua acção presente: é um testa de ferro do estatismo e uma burocracia cara, menos competente e demoradiça. Nunca, no quarto de século da sua existência, soube radicar-se no espírito nacional e criar mesmo um espírito corporativo. Nunca também se deixou contabilizar em perfeitos moldes de uma boa técnica orçamentológica, fugindo à publicidade das suas coutas de gerência e até dos seus orçamentos.
Não alcançou a generalização de preços corporativos, desconhecendo o consumidor, como elemento de relevo de unia economia corporativa. Nunca tentou a reorganização humana das empresas portuguesas e o estudo científico e programático dos problemas do trabalho português, com a reorganização das relações industriais, dos sistemas de remuneração, acompanhados de perto pelos estímulos psicológicos, etc.
A sua previdência social revelou-se cara, ineficaz e burocratizada.
VV. Ex.ªs devem recordar-se, os que foram meus colegas na anterior legislatura, de que procurei defender e sustentar que a revisão do sistema corporativo se deveria fazer por uma mais maleável metodização do corporativismo português, de maneira a poder adaptar-se a servir numa crise de reconversão.
Com uma progressiva remodelação, sobre uma base associacionista, que evitasse a tecnocracia, no sector económico, e muito mais ainda uma pseudotecnocracia, fundada exclusivamente em diplomas universitários e inteiramente alheia a uma longa experiência da vida pública - a burocratismo -, que lentamente leva ao «ilegalismo» de uma ditadura de irresponsabilidades e que se transforma de um meio num fim, e de estar também menos atenta à função social e, portanto, estranha ao equilíbrio constitucional de cooperação económica e solidariedade entre a propriedade, o capital e o trabalho.
Que se procedesse sem demora à reeducação corporativista, destatizando e desburocratizando as suas organizações, e que estas fossem cautelosa e sucessivamente conduzidas para uma plena liberdade de representação e administração;
Que se formulasse uma melhor coordenação corporativa, arrumando, ora vertical, ora horizontalmente, consoante as necessidades económicas nacionais, e que cada um destes agrupamentos tivesse por base um conselho que presidisse e melhor e mais harmoniosamente conjugasse as suas determinações;
Que do Conselho Técnico Corporativo se destacasse um Conselho do Comércio Externo, mantendo-se aquele como centro animador e forçado de todos os interesses económicos nacionais, organizados no seu duplo aspecto vertical e horizontal;
Uma correspondente revisão da sindicalização portuguesa, de modo a acentuar a desproletarização do operariado lusitano e a sua segurança social, procurando mais o financiamento desta por um sistema de repartição de encargos anuais do que pela capitalização de reservas actuarias, não completamente imunizáveis contra o fenómeno mundial de crescente desvalorização monetária e de difícil, nociva e contraproducente cobrança num período económico reconversionista;
O enquadramento do Comissariado do Desemprego dentro da nossa sistematização de segurança social;
E, finalmente, propugnei por um corporativismo que respeitasse as liberdades civis essenciais, mas que não menosprezasse as liberdades políticas, bem condicionadas para não degenerarem em abusos, sem as quais o corporativismo asociacionista se transformaria rapidamente uma fachada, que viria a breve prazo encobrir um estatismo mal disfarçado ou então cairía alternadamente num liberalismo eufórico de lucros ou num intervencionismo esponjando prejuízos.
A Revolução Francesa libertou - já aqui o afirmei - o trabalhador da tutela das corporações, deixou-o livre, mas absolutamente desamparado, em face dos riscos da existência, pois, na verdade, as suas possibilidades de subsistência não acompanharam de perto a sua liberdade e igualdade perante a lei, porque a liberdade formal passou, por assim dizer, a ser o privilégio quase duma casta.
Embora essa liberdade permitisse na Europa Ocidental a criação de boas formas político-económicas, o que é certo é que o trabalhador não pôde aproveitar esse ar de liberdade e teve de continuar a viver no pesadelo da insegurança económica.
Foi no século XIX que o proletário urbano tomou perfeita consciência da sua classe, da sua força, apesar da incerteza económica em que vivia; perigou, por vezes, a ordem pública, por causa das barricadas e greves, mas a ordem social manteve-se nesse século inalterável.
Ao proletário a liberdade não o preservou da miséria; entretanto, a segurança social abria sossegadamente o seu caminho, e hoje já desembocou numa rotunda em que se desenham quatro caminhos: dois principais o capitalismo liberal newdealizado» e »fairdelizado» dos Estados Unidos e o capitalismo de estado da Rússia Soviética - e dois intermediários, duas soluções intermédias - o trabalhismo e o corporativismo. Portugal optou por este. mas às suas botas de novo caminhante vinha agarrada muita má terra liberal.
No corporativismo português o seu sindicalismo perdeu todo o carácter -reivindicativo, obedecendo a instituições jurídicas politicamente dóceis, e a canga ideológica daquele dissipou-se na sua prática de realizações, ocultando mal o liberalismo que substituiu.
Ao weltanschaung do marxismo, isto é, a concepção do mundo colectivista como solução do problema social, respondeu com um oportunismo. Ao colectivismo, que além de uma atitude, é uma opção total do homem em face do Universo, um mito ao serviço de uma paixão, o corporativismo português, laicizado, esquecendo-se do que de tão belo contém a doutrina social católica, apresenta-se uma casuística fria de um esquema ju-