2 DE JULHO DE 1959 1103
Não seria justo se não reconhecesse mais uma vez a incontestável destreza intelectual e o raro tacto e habilidade com que o Sr. Prof. Mário de Figueiredo pega e procura encaminhar as questões.
Não fiquei, porém, convencido. Se ficasse, di-lo-ia.
O processo de S. Ex.ª de argumentar com exemplos é sugestivo, porque chamando-se a atenção para casos da vida real - ou que sentimos poderem-no ser - o espírito é mais vincadamente impressionado.
Todavia, os exemplos nem por serem sugestivos deixam de envolver, pela sua unilateralidade e restrito alcance, verdadeiras amputações e deformações das realidades que se impõe sejam tidas em conta.
E por de mau evidente que o artigo 112.º, na medida em que declara não depender o Governo das votações da Assembleia, apenas quis afastar a possibilidade de ser provocada a queda do Governo mediante votos de desconfiança ou moções de censura, isto é, apenas quis afastar o sistema parlamentar. Não quis, é claro, impedir a Assembleia de votar em sentido divergente do Governo, o que, além do mais, seria absurdo. Assim, não se percebe o que é que a eventual não aprovação de uma lei criando impostos tem a ver com o referido preceito.
Mais: o próprio artigo 112.º, ao declarar que o Governo «não depende do destino que' tiverem as suas propostas», visa prevenir precisamente o caso de a Assembleia votar em sentido divergente do Governo, acentuando que isso não implica a respectiva queda.
Deste modo, a hipótese indicada pelo Sr. Prof. Mário de Figueiredo não só não contraria o artigo 112.º, mas ainda está neste claramente prevista como verificável adentro da nossa estrutura constitucional.
Não vejo, pois, como S. Exa. do facto de a Assembleia poder vir a não aprovar uma lei de impostos extrai a conclusão de que o artigo 112.º poderia ser violado. . Aliás, como é implicado pelo princípio aceite da divisão do Poder político, já são possíveis à face da Constituição diferentes emergências em que a Assembleia contrarie eficazmente a vontade do Governo.
Assim, e apenas exemplificativamente, a Assembleia pode negar-se a aprovar leis pelo Governo reputadas fundamentais para a defesa nacional, pode paralisar a organização judicial, pode até recusar aprovação à Lei de Meios, etc.
Por outro lado, segundo parece, o que se pretende é exprimir a ideia de que o Governo, na emergência que se aponta, ficaria impossibilitado de governar, pelo facto de não poder dar satisfação aos princípios constitucionais que exigem o equilíbrio do orçamento.
Supondo que as coisas poderiam ser consoante se diz - e não podem -, todo o raciocínio do Sr. Prof. Mário de Figueiredo é logo afectado na raiz pela circunstância de assentar num pressuposto inexacto. É que S. Exa. parte do princípio de que o orçamento só poderia equilibrar-se com o aumento de receitas implicado pelas propostas de lei que por hipótese a Assembleia se recusaria a aprovar, quando a verdade é que há outra maneira de equilibrar o orçamento, qual seja a de diminuir as despesas. £ assim que por vezes tenho de proceder na minha casa.
Tanto bastaria para mostrar a falta de base da argumentação do Sr. Prof. Mário de Figueiredo.
Há, porém, mais.
E que os artigos 67.º e 68.º da Constituição, donde se pretende inferir o princípio do equilíbrio do orçamento, têm carácter meramente programático, limitando-se a traçar um ideal a atingir, e não propriamente a criar deveres estritos e sancionáveis para qualquer dos órgãos da soberania.
Basta pensar em que há hipóteses, como as de guerra e outras emergências graves, em que é praticamente impossível conseguir o equilíbrio orçamental para logo se ver a exactidão do que acabo de afirmar.
Assim, ainda que por virtude do condicionalismo exposto não fosse possível equilibrar o orçamento, não se vê porque é que o Governo ficaria impossibilitado de governar. Governaria com um orçamento não equilibrado.
Acresce que se a não aprovação das leis necessárias para conseguir o equilíbrio do orçamento fosse por qualquer modo susceptível de sanção, no lato sentido da palavra, esta teria de repercutir-se, é claro, no órgão causador da não consecução do equilíbrio, na Assembleia por hipótese, e não no Governo. De qualquer modo, não se percebe porque é que o pseudo desrespeito de um princípio constitucional pela Assembleia haveria de pôr em causa o Governo face à Constituição.
Um exemplo servirá para pôr à luz aonde conduziria a lógica do Sr. Prof. Mário de Figueiredo.
O argumento trazido ao debate por S. Exa. cifra-se, sob certo aspecto, em acentuar que o atribuir-se à Assembleia, de harmonia com a proposta agora em discussão, competência exclusiva para legislar em matéria de impostos poderia conduzir à violação do princípio constitucional do equilíbrio do orçamento, no caso de a Assembleia se recusar a aprovar as leis necessárias para a consecução desse equilíbrio.
Queiram VV. Exas. reparar numa aplicação de tal tipo de raciocínio.
É princípio constitucional o da defesa da integridade do território nacional. Sendo assim, mão deve atribuir-se à Assembleia competência exclusiva sobre matéria de defesa nacional, e isto porque, no exercício dessa competência, pode a Assembleia vir a recusar-se a aprovar as necessárias a essa defesa, com a consequência não só de violar o referido princípio constitucional, mas ainda de paralisar o Governo face à Constituição.
Acontece, porém, que a Assembleia já tem competência exclusiva para legislar sobre a organização da defesa nacional ...
Todavia, a raciocinar-se nos termos em que o fez o Sr. Prof. Mário de Figueiredo, ser-se-ia conduzido a suprimir no artigo 93.º a alínea relativa à organização da defesa nacional, e até talvez tudo o mais que consta dessa disposição. Esse raciocínio levar-nos-ia mesmo mais longe.
Por outro lado, cumpre acentuar que, mesmo dentro dos princípios postos pelo Sr. Prof. Mário de Figueiredo, nunca seria a inclusão da matéria de impostos no artigo 93.º que poderia envolver violação do princípio do equilíbrio orçamental, mas sim a futura e eventual atitude da Assembleia consistente em, no exercício da sua competência exclusiva, recusar a aprovação a leis necessárias à consecução desse equilíbrio.
Todavia, por virtude da inevitável possibilidade de violações da Constituição é que existe toda a teoria da inconstitucionalidade.
Além disso, se nós, só porque é possível que um órgão da soberania venha a utilizar os respectivos poderes indevidamente - supondo que a utilização seria, no caso concreto, indevida, começássemos logo pôr lhe negar tais poderes, aonde nos conduziria isso?
Conduziria, por exemplo, a negar todos e quaisquer poderes à Assembleia.
Aliás, não faz sentido falar de violações à Constituição quando está precisamente em causa a respectiva alteração.
Em resumo, direi que não me parece defensável a posição do Sr. Prof. Mário de Figueiredo:
1.º Porque o argumento de S. Exa. apenas seria viável na hipótese de se entender que a Assembleia nunca deveria poder contrariar eficazmente a vontade do Governo, isto é, dentro da tese da concentração do Poder