846 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 216
Entre todos os assuntos que aquela missão devia estudar quero referir-me a um particularmente grave: o de elevado custo de vida na Madeira.
Realmente o custo de vida no arquipélago está assumindo proporções graves e que afectam todos os sectores da população, sem esquecer o funcionalismo público e administrativo, que se vê a braços com sérias dificuldades para equilibrar os seus parcos orçamentos.
E a verdade é que sem providências tomadas no plano governativo esse problema não pode ser debelado. É necessário rever todo o sistema de encargos que afectam os produtos de primeira necessidade para o consumo público, por forma que possam ser vendidos em melhores condições de preço. E quando não há na ilha produtos bastantes para satisfazer as necessidades do consumo, que se faça a sua importação de fora, através dos organismos de coordenação económica, como se faz aqui no continente.
O peixe tem na alimentação do povo madeirense, nomeadamente no Funchal, um papel importante. Pois na maior parte dos meses do ano o seu preço é quase proibitivo. Daqui apelo para o Sr. Ministro da Marinha no sentido de auxiliar a Capitania do Porto do Funchal e a classe piscatória a melhorar e tornar mais eficientes :is nossas embarcações de pesca. Mas, enquanto isso não é obtido, que se enviem para a Madeira quantitativos apreciáveis de peixe, que o tornem acessível à cia «e média e aos operários e trabalhadores e suas famílias, que necessitam de um condimento para o pão, para o milho e para a batata, que constituem á base da sua alimentação.
Durante muitos anos disse nesta Câmara que o problema n.º 1 da Madeira era o problema das comunicações.
Pois agora, que esse problema está em vias de solução, direi que o problema n.º 1 daquela ilha é o do custo de vida. E é para ele que temos efectivamente de dedicar as nossas atenções e canalizar todos os nossos esforços.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Afonso Pinto: - Sr. Presidente: no dia 18 de Junho deste conturbado ano de 1961, que todos desejamos seja da graça do Senhor, faz precisamente um século que, numa vilinha trasmontana de origem árabe, a quase mil metros de altitude -Mogadouro -, nasceu alguém que havia de vir a ser, e foi, uma das mais ricas personalidades do mundo português: José Francisco Trindade Coelho - alguém cuja memória me é grato evocar hoje aqui, no seio da Representação Nacional, como seu devotado admirador, seu compatriota, seu comprovinciano e seu patrício. Só lamento que a insuficiência de tempo de que regimentalmente posso dispor e a minha natural deficiência contribuam para apoucar a homenagem justíssima de que é credora uma tão grande figura das nossas letras, tão assinalado varão das nossas virtudes cívicas.
Mas, como Deputado pelo círculo de Bragança e como mogadourense, particularmente impera sobre mim o dever de deixar aqui uma fala, de depor aqui, em honra de tão grande homenageado, um bem modesto tributo, já que outro não posso depor: uma singela coroa de perpétuas - rústicas e descoloridas flores campestres de s quais a enternecida sensibilidade de retina do contista de Os Meus Amores seria capaz de colher eflúvios de poesia pura.
Quem foi ou, melhor, quem é José Francisco Trindade Coelho?
É por certo esta uma pergunta inútil, pois todos o conhecemos, mas nem todos o conheceremos bem. Faço votos para que neste ano do centenário do seu nascimento sobre ele se projecte toda a luz, para que nos possa ser claramente revelado na sua perspectiva histórica.
Eugênio de Castro, o nosso grande poeta do simbolismo, numa síntese brilhante e feliz, deu-nos estes traços do nosso homenageado de hoje:
Trasmontano. Pequenino, mas tesinho.
Alegre como uma romaria. A sua voz é um adufe ao som do qual os seus olhos bailam. Vigoroso e sadio física e literariamente. A sua prosa é máscula: prosa com músculos e sangue. Prefere os assuntos simples aos assuntos complicados. Ao longo dos seus contos não se alastram óxidos de almas difíceis, nem se emaranham filigranas de raras psicologias, No meio dos modernos livros, são como ingénuos colegiais entre viciosas pessoas.
Está rigorosamente certa esta síntese de grande poeta, mas ela não nos mostra o reverso da medalha: a angústia latente de uma alma de hipersensível, onde, por vezes, se ateava a labareda do desespero, que, numa luta heróica, ainda conseguiu dominar, até ao trágico desfecho da sua morte voluntária por colapso da vontade.
Mas melhor que os literatos e os leigos poderão os neurologistas explicar o fatal desenlace de certas tragédias humanas.
Deixemos, portanto, estas considerações à medicina e limitemo-nos à piedade de uma prece pelos que caem devorados pelas labaredas do desespero humano.
O verdadeiro retrato a corpo inteiro de Trindade Coelho podemos vê-lo na sua Autobiografia e Cartas, obra admirável de beleza literária e riqueza psicológica, compilada com mãos piedosas pelo seu filho Henrique Trindade Coelho, esse nobre e gentilíssimo espírito de escritor, jornalista e diplomata que tão bem soube honrar o nome honrado e glorioso de seu pai.
Nessas cartas, repassadas de sinceridade, até por se não destinarem ao prelo, na sua maior parte, há frases que são cristalizações de aforismos morais e estéticos e que revelam bem o carácter nobilíssimo do seu autor.
Ao recordar a leitura, repetida e sempre interessada, da obra de Trindade Coelho, evoco o literato, o jurisconsulto, o magistrado, o advogado, o mestre de regionralismo e de portuguesismo, o amigo devotadíssimo dos humildes, o perfeito homem de bem, «de uma só fé e um só parecer, de antes quebrar que torcer», u velha e clássica maneira de Sá de Miranda; porque tudo isso ele foi num grau elevado que raros poderão atingir.
No campo literário a sua obra não é abundante, já que, como ele dizia, não tinha a fúria da quantidade, mas a da qualidade.
O seu único livro de contos - Os Meus Amores - é um livro eterno, pela fina intuição, pela originalidade, pela graça de contar, pela autenticidade, pela viva humanidade das suas personagens pela misteriosa captação das essências, dos eflúvios das coisas, e pelo halo do poesia que, como gaze subtil, tudo envolve: figuras e paisagens.
«Qualquer das peças deste livro - dizia o exigente Fialho - abrange apenas o fôlego de uma ou duas dúzias de páginas, deliciosas, porém, como factura, admiráveis de harmonia e de uma saúde moral que faz desejos de estimar pessoalmente o seu autor».
O In illo tempore crónica de recordações da vida do estudante coimbrão, é outro livro adorável e até hoje inigualável no género, pela graça e viço da narrativa numa prosa simples e despreocupada, que nos prende