30 DE JANEIRO DE 1963 1939
os alienistas do Porto, ainda exagerava esses pontos de vista por determinantes de aversão religiosa e de preconceitos políticos, ao ponto de se proclamar convicto de puro materialismo monista.
Bem recordo, a propósito, aluno eu então do Colégio de Gampolide, a sua famosa polémica com o sagacíssimo jesuíta P.e Santana e em que Bombarda não levou a melhor!
Com o advento da República e a sequente reforma universitária de António José de Almeida - uma das escassas obras desse período de que algo subsiste de proveitoso -, logo Júlio de Matos e Magalhães Lemos ascenderam ao decretado ensino da Psiquiatria, que passou a ser leccionada em Coimbra pelo Prof. Sobral Cid, que antes regera Medicina Legal, e onde os alunos de Direito do meu tempo houveram como eu o proveito de o ter tido por professor.
O sentido da primeira grande e decisiva reforma em Portugal da assistência médica deve-se, através do referido Ministro, a inspiração de Júlio de Matos. E só falamos no sentido dela porque quanto a efeitos foi platónica. As interferências, porém, nela previstas quanto ao ensino da psiquiatria nos estabelecimentos particulares, como o era o do Conde de Ferreira, determinaram o conflito da Misericórdia do Porto com aquele médico e a sua retirada para Lisboa, em cuja Faculdade de Medicina entrou como professor das respectivas matérias. E, tal como antes sucedera com Ricardo Jorge, o meio culto da capital só ganhou com esse exílio ...
Deixemos agora o horizonte das muralhas do burgo portuense e, em convergência como o positivismo informador da mentalidade dos sobredesignados mestres psiquiatras, lancemos uma vista de olhos sobre as novas aspirações culturais do País após o quebra-esquinas Quental, que foi o da chamada «questão coimbrã» e as sequentes «conferências do Casino».
Centremo-nos em Coimbra, e particularmente na Faculdade de Direito, por volta de 1880.
Como até agora, para efeitos portuenses, nos socorremos das lições do Prof. Luís de Pina; para segurança do que já sabíamos por tradição nos servirá de bordão o trabalho do caro condiscípulo Prof. Cabral de Moncada no seu trabalho sobre a «Filosofia do Direito em Portugal», publicado nos anos XIV e XV do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra.
Se o fazemos é pela influência que as doutrinas absorvidas pelas gerações académicas ou por influxo do ensino ou por reacção contra ele nunca deixam de repercutir-se um dia na orientação dos governantes, e isto com tanta mais importância nessa época em que a Faculdade de Coimbra detinha o exclusivo do ensino do Direito.
De facto, se até cerca de 1875 o ensino Jurídico fora dominado pelo jusnaturalismo com o carácter racionalista e humanitário que lhe insuflara o «Iluminismo» dos enciclopedistas e a filosofia de Kant, começou nessa altura a experimentar a forte lição de voz discordante. Era a do Prof. Emídio Garcia, que, incumbido de preleccionar cadeiras de Direito Público e dotado de faculdades de exposição aliciantes, soube imprimir um sulco indelével na alma das gerações discípulas suas a favor da filosofia experimental de Comte - o método cientifico, a classificação hierárquica das ciências, a lei dos três estados, como expressão do progresso humano, etc. -, acrescentada já com o evolucionismo de Spencer - passagem do homogéneo ao heterogéneo.
Essa orientação positivista conseguiu transmiti-la aos futuros professores que haviam sido seus discípulos em termos de praticamente aquela escola por muitos anos se achar impregnada de positivismo, confessado, embora, ou não. Essa foi a faculdade do meu tempo, à parte uns sobreviventes, já poucos então, do Direito Natural.
O positivismo assim ensinado era, não já de estrita observância de Comte, que com a subida aversão pela metafísica nutria também aversão radical contra a desordem revolucionária filha legítima das doutrinas dos enciclopedistas, o que o tornou legítimo mestre de contra-revolução. Era-o antes segundo a lição de Littré e seus sequazes, que inculcavam um comtismo avariado de sectarismo anticatólico e antimonárquico.
Este proselitismo do Dr. Garcia veio a alcançar, indiscutivelmente, decisiva influência no País. E se com verdade se pode dizer que no Barsil o regime republicano se gerou do positivismo - proclama-o o lema ali oficialmente adoptado de «ordem e progresso» -, com não menos fundamento isso se pode asseverar quanto a Portugal, embora com a moratória de vinte anos.
Nesse influxo doutrinário teve lugar primacial o precepturado positivista do Dr. Garcia, que ele cumpria na sua qualidade de professor como dever de ofício e assim o proclamava (ver fitado Boletim XV, p. 65).
Essa sementeira de filosofismo natural, com o seu axioma do determinismo de todos os fenómenos, sem exclusão dos psíquicos, encontrou, como é sabido, marcado campo de aplicação no direito criminal. Isso se passou com o aparecimento da escola antropológica italiana - o sabido triunvirato Lombroso, Ferri, Carófalo.
Essa escola entre nossos juristas enxertou-se. naturalmente nos apontados precedentes de positivismo através sobretudo do ensino do Prof. Henriques da Silva, em Direito Penal. Subsequentemente se foram publicando dissertações e lições jurídicas filiadas nessa escola-Afonso Costa, Abel de Andrade - Abel de Andrade daquele tempo -, Mendes Martins, etc., e até em medicina, como se exemplifica com Os Criminosos do Prof. Basílio Freire. Ainda no meu tempo o saudoso Prof. Caeiro da Mata por aí pautava os passos do seu ensino, embora já um tanto mitigadamente.
Sr. Presidente: e para que estou aqui a fazer perder precioso tempo de atenção à Assembleia com doutrinas hoje ultrapassadas? E, no entanto, penso não ser inútil que o faça para pôr em relevo o desenvolvimento afim e paralelo da psiquiatria e da criminologia.
E que essa afinidade não deixou de continuar a subsistir hoje quando, como veremos, se apresentam diferentes os princípios condutores que fundamentam tais matérias e que, no entanto, mantendo intacto o respeito pelo método científico proclamado pelo positivismo, soube aproveitar desta doutrina, ultrapassando-a, o útil, que, aliás, não é pouco, particularmente quanto ao valor do estudo concreto do delinquente e dos factores físicos e sociais da criminalidade.
Como ilustração do destino que entre nós teve o positivismo como orientador da resolução do problema da assistência psiquiátrica, voltemos a Júlio de Matos e aos resultados da sua obra.
Com o advento da República e sob o regime da ditadura do governo provisório, teve ele o ensejo feliz de ver transformadas em lei as suas projectadas reformas quanto à saúde mental e aos menores anormais e delinquentes. Há que reconhecer, dentro do critério do tempo, tratar-se de diplomas sérios e bem organizados.
No entanto, pelo que se refere à assistência-psiquiátrica, foi lei nada-morta. Não pôde efectivar-se porque a desordem do ambiente político e correlativa escassez de meios financeiros o não consentiu. Júlio de Matos, no fim da sua vida, desenganado e desiludido da realização da obra planeada, largamente o exprimiu em cartas familiares.