2940 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 118
vás, ao gosto, aliás, daquele tempo, dominado pela preocupação da sociologia, então a ciência da moda.
Em 1934, quando ao Prof. Marcelo Caetano foi pedido o projecto do Código Administrativo da Revolução Nacional, o panorama era já algo diferente, é certo, mercê do magistério na cátedra, e fora dela, dos Profs. Magalhães Colaço, Fezas Vital e Martinho Nobre de Melo. Mas, preciso é dizê-lo, o panorama começara apenas a esclarecer-se e iria a caber precisamente ao Prof. Marcelo Caetano defini-lo na clareza e na profundidade que o direito administrativo adquiriu e possui hoje em Portugal.
Relatei este brevíssimo esboço histórico para de algum modo relembrar as condições em que nasceu o actual Código Administrativo, cuja reforma se pede no aviso prévio em apreciação, e que, a meu ver, podem ajudar a medir o seu valor o a fazer justiça a quem o determinou e a quem abnegada e proficientemente cumpriu a missão recebida.
Não me proponho, por o crer desnecessário e por certo deslocado, fazer aqui a análise sistemática do Código Administrativo, em ordem a verificar em que parte carece de revisão e por que forma haveria esta de processar-se.
Direi apenas um ligeiro apontamento acerca do que nele; me parece essencial e aqui terá inteiro cabimento e tem merecido muitos dos ataques, in totó, àquele diploma: o Código Administrativo é bem um código da Revolução Nacional. A administração local - e apenas desta se ocupa - é gizada numa concepção que traduz fielmente os seus princípios, aliás já definidos nas suas grandes linhas na Constituição Política que anos antes fora plebiscitada.
Talvez por isso o Código Administrativo nem sempre tenha sido cumprido no seu espírito, e daí o atribuir-se-lhe a responsabilidade de lacunas e deficiências que não serão apenas dele ...
«É perfeito o Código de 1940?» - perguntava o seu ilustre autor, já em 1949, se não me engano.
«Evidentemente que não», responde sem hesitação. «Mas - continua - do que estamos convencidos é de que serve muito bem para as actuais necessidades da administração local e de que falta sobretudo não revê-lo, mas cumpri-lo. Temos a tendência para lançar sobre as leis os defeitos dos homens. Quantas vezes, porém, é mais culpada a execução do que o texto.»
Na verdade, talvez por inclinação natural, parece que em face de erros ou faltas, preferimos emendar as leis a corrigir as pessoas. Daí que os erros e as faltas persistam tantas vezes, mesmo quando mudamos as leis.
Vai a caminho dos 30 anos o Código Administrativo. Revisto em 1940, tem sido alterado posteriormente, nalgumas das suas disposições, em harmonia com as exigências da prática da administração e da reforma de actividades e serviços, que, sem nele estarem regulados, no entanto de algum modo com ele se prendem.
Nestes 30 anos foi profunda a revisão operada em muitos sectores da vida da humanidade. E profundas foram também as modificações sofridas na organização política e social das nações.
Sem que as tenhamos sentido na dimensão que outros tiveram de suportar, certo é que lhes não ficámos alheios.
Em correspondência com tamanhas e tão profundas modificações é evidente que algo pode haver - e há certamente - a rever no Código Administrativo que vem atravessando todo esse tempo se não incólume, ao menos com vigor ...
Pois vejamos.
Uma como que crítica de fundo, que toca nos próprios alicerces do Código Administrativo e que sempre vem servindo para requerer a sua revisão, respeita ao municipalismo como instituição.
Diz-se e escreve-se - e o anúncio do presente aviso prévio é nisso modelo - que por via do actual Código Administrativo os municípios atravessam grave crise, a viverem situações de artificialismo, em complicada teia de dificuldades que os priva de desenvolverem toda a vasta gama de suas importantes potencialidades, sem poderem, por isso, colaborar com o Estado em plena eficiência nas tarefas do engrandecimento nacional.
E tudo isso fundamentalmente assentaria naquilo a que chamam de grandes desencontros da estrutura financeira municipal.
Em contrário do que aí fica, penso que o municipalismo não corre perigo entre nós, que terá sido precisamente o Código Administrativo que o salvou da morte e que as finanças municipais não terão sido tão afectadas, na vigência do Código Administrativo, como tantas vezes se diz.
Alexandre Herculano terá sido o responsável pela euforia municipalista do liberalismo e que nós herdámos. Ao verificar a falência da revolução liberal na política, refugiou-se no culto das liberdades municipais, de que a nossa Idade Média fizera um dos traços característicos da administração pública.
Era uma realidade histórica, sem dúvida, cujo merecimento e valor o romantismo e a eloquência do grande historiador e poeta souberam transformar em anseio de todo o nosso século XIX e parte do século XX.
Na verdade, depois dele, todos os partidos políticos fizeram da restauração das antigas liberdades municipais um pendão eleitoral, o que era uma especulação continuada na República, que logo em 1910 prometia devolver ao município todo o seu antigo esplendor, poder e prestígio.
Ora o certo é que desde o século XV, e de modo mais vincado desde o século XVI, os municípios em Portugal viviam e entretinham-se com as diminutas preocupações da pequena administração local.
O rei reduzira os forais a pouco mais que regimentos de honrarias e pautas fiscais, sobrepondo-lhes as leis gerais da Nação em todos os restantes aspectos da administração nacional. E fora o que valera para ser possível a gesta marítima.
E daí que a nossa história não registe, na política, no fomento, na cultura, na arte militar, na economia ou em qualquer outro sector da vida nacional, grandes rasgos municipais, e se contente aí em anotar pequenos feitos locais que, sem embargo, o bairrismo venera e exalta.
As proclamadas liberdades e autonomias municipais eram assim, e sem dúvida, um valor emocional, de aceitação e culto no ânimo lusíada, sempre inclinado a uma visão historicista da vida, mas despido de vigor que pudesse contribuir eficazmente para a governação pública, mesmo no restrito círculo dos interesses concelhios, mas despido de vigor que pudesse contribuir eficazmente para sarar a administração pública do caos de todas as naturezas em que um liberalismo sem autenticidade a lançara.
No entanto, fora, como disse, sob o signo desse tal valor que, após Herculano, e pelo que respeitava à administração local, se processaram os programas de todos os partidos e movimentos políticos. Tantas liberdades e autonomias foram outorgadas aos municípios que os iam afogando!
A sua organização, à laia de pequenas republiquetas, com disputadíssimas eleições dos membros dos seus vários e variados órgãos, transformou-os em zonas não de vizinhança fraterna e de solidariedade de interesses, mas de desenfreadas lutas políticas, de facções que se combatiam com incrível dureza, de clima de ódios vivos que destruíam toda a possibilidade de convívio.