4390 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 180
simples estabelecimento de venda de certos artigos, onde os farmacêuticos, por norma, não exercem qualquer fiscalização? Mas como haveria de exigir-se desse comum das pessoas a gama de conhecimentos indispensáveis a uma justa e conscienciosa apreciação do problema, em ordem à solução consentânea com as realidades sociais do nosso tempo? Ou como haveria de estranhar-se o facto de «os farmacêuticos não exercerem em regra qualquer fiscalização ou contrôle técnico sobre as especialidades que vendem», se pelas próprias contingências do regime da dissociação entre a gerência e a propriedade que entre nós vigora, embora contra legem, eles são relegados para um plano mais do que secundário, tratados como insignificantes empregados, pagos com afrontosos ordenados, considerados quase como um mal necessário, remetidos, enfim, para uma posição de chocante e a todos os títulos lamentoso desprestígio? Com base em que oídem jurídica ou moral poderão exigir-se obrigações sem uma correspectiva atribuição de direitos?
Há-de também adoptar-se o princípio da livre propriedade da farmácia em Portugal só porque ele foi perfilhado noutros países, como os Estados Unidos da América, a Inglaterra, a Holanda, alguns cantões da Suíça, etc?
A cópia de padrões estrangeiros só poderia justificar-se quando fosse demonstrada, no nosso país, a existência daquelas mesmas especiais circunstâncias de temperamento, de cultura, de tradições, de estrutura político-
-social; e tal demonstração, ao que julgo saber, não foi feita ainda em apoio do argumento invocado, nem muito menos foi referido o facto verdadeiro de naqueles países se estar a reagir fortemente contra o princípio da livre propriedade, que se deseja ver evoluir para um regime idêntico ao praticado em todos os países da Europa livre, excepção feita à Inglaterra. E de resto, cópia por cópia figurino por figurino, por que estranha e decisiva razão haveríamos de seguir nesta matéria os Anglo-Saxões e não os Latinos, que também somos? Claro que o problema não é de cópia, mas de escolha do regime mais racional, mais apropriado à defesa dos altos interesses que estão em jogo.
Há-de ainda caminhar-se resolutamente para a tese da não-indivisibilidade só porque a Constituição garante a «livre propriedade» e a «liberdade de escolha de profissão ou género de trabalho, indústria ou comércio»? O argumento da «livre propriedade» só poderia impressionar se esse princípio constitucional estivesse formulado em termos absolutos Mas não está, como todos sabemos, e é até um dos que a própria Constituição sujeita a mais amplas limitações, por razões de interesse público e pela consideração de que os direitos privados deverão sacrificar-se ao bem comum, sempre que este o exija. Ora, se a saúde pública é um bem comum, como gregos e troianos reconhecem, nada impede e antes se impõe que o Estado promova e faça executar toda uma série de medidas tendentes a assegurar a plenitude e integridade desse bem comum. E na prossecução de tão imperativa como indispensável tarefa, poderá o Estado, adentro dos princípios que vier a perfilhar na matéria, socorrer-se de normas constitucionais de excepção que lhe permitam restringir ou reservar a propriedade da farmácia a uma certa categoria de entidades ou pessoas.
E quanto à liberdade de escolha de profissão ou género de trabalho, apenas se dirá que ela não sofre qualquer limitação no regime da indivisibilidade da gerência técnica e da propriedade para farmacêutico, tal como para advogado, médico ou engenheiro, continuará a ir quem quiser, com a condição legal, porém, de completar o curso e assim conquistar o direito ao diploma que lhe permitirá exercer a respectiva profissão. Ou os proprietários de farmácia não farmacêuticos desejariam solução diferente para o seu caso?
Há-de, por outro lado, taxar-se de argumento válido, em favor da adopção da livre propriedade da farmácia em Portugal, a circunstância de haverem sido criadas, desde há largos anos, determinadas situações de facto que, tendo-se afirmado como único esteio económico e financeiro de muitos agregados familiares, acabaram por lhes impor certo modo de vida do qual só poderão retirar-se agora com penoso sacrifício?
Em primeiro lugar, não pode nem deve esquecer-se que tais situações configuram - excepção feita às que se estabeleceram anteriormente a 1933 - a concretização de actos que a lei proibia, por os considerar lesivos de um interesse público. Foram situações procuradas consciente e deliberadamente pelos interessados, com expressa infracção de normas em vigor, que eles muito bem conheciam pelo que tem de concluir-se que ao procederem deste modo, aceitaram desde logo conformar-se com as inevitáveis consequências do ilícito praticado. Que espécie de consideração pode então merecer quem assim se comportou? E que protecção há-de a lei dar a um facto que em si mesmo representa a consumação de uma fraude a essa própria lei?
Pois apesar de tudo, e por estranho que pareça, a sanção dessas ilegalidades foi defendida pela Câmara Corporativa, em termos o mais latos possível, e está preconizada na proposta de lei em discussão com uma latitude e uma benevolência tal que, por excessiva, bem parece difícil de justificar e aceitar
Em segundo lugar, o sacrifício que haja de impor-se às viúvas e filhos dos farmacêuticos falecidos, no sentido de lhes negar o direito de continuarem na posse da farmácia, a não ser por mais um certo prazo, não é maior, e até parece ser menor, do que o sacrifício suportado, por exemplo, pelas viúvas e filhos de médicos e advogados que, por seu falecimento, deixam valiosos consultórios e escritórios, dotados uns com aparelhagem caríssima, sobretudo se se trata de médicos radiologistas, apetrechados outros com bibliotecas jurídicas completas, sempre de valor incalculável, consultórios e escritórios que, por hipótese - e na realidade quantos casos verdadeiros! -, constituíram durante a vida dos respectivos profissionais o seu - e, pois, da sua família - único instrumento de trabalho, única fonte de receita, única base económica estável do lar. E todavia, morto o médico, morto o advogado, nem a viúva, nem os herdeiros, pensam um instante sequer em continuar à testa dos consultórios ou escritórios, pois sabem que isso não lhes é consentido por lei.
Sabem-no, acatam-no, e limitam-se, ordeiramente, conformadamente, a desfazer-se deles, logo que possível sem que a lei contemple o caso - tal como agora está proposto, e muito bem, em relação à venda ou cedência das farmácias - com quaisquer medidas tendentes a assegurar a defesa dos interesses particulares em jogo.
O Sr. Proença Duarte: - V. Exa. dá-me licença para um pequeno aparte?
O Orador: - Faça favor.
O Sr. Proença Duarte: - A situação que V. Ex. a apontou, do médico e do advogado que, tendo investido no seu escritório vultosos capitais, têm de se desfazer deles, não envolve que eles sofram a restrição do direito de propriedade.
O Orador: - Sofrem, porque a lei lhes impõe.