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12 DE DEZEMBRO DE 1966 803

ções práticas, para extrair delas um conceito de vida - uma verdadeira filosofia jurídica.
Foi sob o individualismo sem peias que nasceu há cem anos o nosso primeiro Código Civil; nessa «belle époque», em que o ouro corria fácil numa sociedade eufórica, o problema económico era mera especulação de teóricos azedos.
Muito girou, porém, o Mundo neste século; de um liberalismo fácil caiu-se no totalitarismo implacável, da esquerda e da direita, ou, pela mais suave das soluções, num estatismo absorvente e asfixiante em que o económico sobreleva todos os outros conceitos.
Passou-se de um extremo ao outro, sem se bulir na essência do problema, porque (os extremos tocam-se) se persistiu em ignorar a verdadeira personalidade humana, ou - se quisermos usar fraseologia moderna - em desconhecer o verdadeiro humanismo.
Ontem, endeusava-se o indivíduo, esquecendo que ele não podia viver senão em sociedade; hoje, dissolve-se a personalidade na massa, reduzindo-se o homem à mísera condição de simples molécula de um monstruoso corpo social.
Foi neste ambiente de extremismos aberrantes da natureza humana, já a descambar para o caos dos valores e para a descrença nos princípios, que surgiu o novo código português.
Em tal ambiente brumoso e incerto, este código de portugueses e para portugueses afirma a rota certa - garantir os sagrados e intangíveis direitos da pessoa humana e impor a todos efectivo respeito e subordinação ao comum.
O novo código, estabelecendo assim o justo equilíbrio entre o individual e o social, colocou-se na vanguarda das codificações modernas e imprimiu ao nosso direito a sigla verdadeiramente nacional.
É esta, a meus olhos, a mais destacada, a primordial faceta - simultaneamente filosófica, política e social - que ressuma deste nosso monumento legislativo.
E é também esta a característica que, em meu entender, mais interessará a esta Assembleia Nacional, porque o código novo, na medida em que estratifica os sentimentos de justiça e a concepção ética do povo português, realiza, em pleno, a sua função de paz social, visto que, como enunciou o incomparável papa Pio XII, a paz é obra da justiça.
Embora a esta Assembleia não interesse o aspecto estritamente jurídico dos problemas, não lhe pode ser alheia a ressonância pública de problemas jurídicos.
Não será, por isso, deslocado aflorar aqui dois ou três aspectos que, embora de essência jurídica, se repercutem largamente no político e no social.
Permitir-nos-emos, preliminarmente, considerar como mero lapso de escrita a data fixada, no decreto preambular, para a entrada em vigor do novo código - 1 de Junho de 1967.
Na verdade, ocorrendo no subsequente trintídio o centenário da carta da lei que aprovou o nosso primeiro Código Civil, seria compreensível e justo comemorar o centenário do velho código com a entrada em vigor do código novo.
A esta homenagem - que, mais que merecida, reputamos devida -, acrescia o mérito de aumentar em mais um mês o curto prazo concedido para o estudo da lei, do mesmo passo que vantajosamente poria em vigor o código, não em plena azáfama do ano judicial, mas já no seu declínio, quando começa «a cheirar a férias».
Se o Governo entendesse, como eu entendo, que estas razões são tão válidas que só por lapso se não fez coincidir a vigência do código novo com o centenário do velho, facílima seria a rectificação no Diário do Governo - 1 de Julho de 1967.
A sistematização do código e as soluções jurídicas nele preconizadas para os diversos institutos foram objecto de estudos sistemáticos, mormente por parte da Ordem dos Advogados, que promoveu e animou a exegese da lei nova, embora tenhamos de lamentar que a maior parte desses estudos, dado o crónico atraso das publicações da Ordem, só chegue ao conhecimento do grande público quando tiverem perdido actualidade.
A par com os estudos, surgiram as inevitáveis críticas, bem e mal intencionadas, sinceras ou verrinosas, muitas vezes pessoais, mas que tiveram o traço comum de incidir na estruturação da família e visar o estado das pessoas.
Porque, assim, se pode considerar esgotado o tema, não insistirei nele; emitirei apenas a opinião pessoal de que não considero exagerada, a protecção que o código dá à família legítima.
A instituição familiar, célula insubstituível do corpo social, vem sofrendo há longos anos os embates demolidores da evolução social e económica e a corrupção de doutrinas delectérias e, tantas vezes, insidiosas.
Vítima dos ataques de tudo e de todos, a família moderna torna-se «uma sociedade disforme e fértil em atritos, caracterizada para todos os seus membros pela comunidade de escada e patamar», na expressão lapidar e impressiva de Radbruch.
Contra este declínio suicida, só uma voz, só um movimento, previdente e válido, se ergueu - o da Igreja Católica, através da encíclica Casti Connubii, já velha de 36 anos.
Só agora, porém, em face das consequências dramáticas que se avolumam, é que as nações começam a reconhecer que, quando a célula familiar adoece, o corpo social gangrena-se.
Sabemos bem que não é ao direito civil que se pode pedir a completa salvaguarda da instituição familiar, até porque muitas das causas dissolventes se situam para além do direito privado.
É, no entanto, a este direito que cabe a decisão final sobre a vida e a morte da família.
A nosso ver, embora não compreendamos a razão por que se manteve a noção individualista do casamento-contrato, e não se subiu ao conceito de casamento-estado ou instituição, tem o novo código o mérito de reagir, na medida que reputou possível, contra a demagógica legislação anterior.
Ponto era que os demais organismos estaduais, acompanhando este movimento de protecção e dignificação, conferissem à família amparo igualmente eficaz e positivo, em vez de a reduzirem a estafado alvo de ditirambos, tão líricos quanto platónicos.
Outro problema, que se nos afigura o mais agudo de todo o código, consiste na invocação frequente da boa fé e da equidade para solucionar questões, por vezes da maior transcendência.
Como o reconheceu o ilustre Ministro na sua memorável exposição, esta remessa para conceitos movediços e esfumados, que mais se sentem do que se definem, constitui arma perigosa e de efeitos imprevisíveis.
Sem querer dissecar agora o reflexo destas normas em branco nos maus advogados (o que será o menos) e nos maus julgadores (o que é infinitamente pior), eu encaro aqui o problema pelo ângulo do cidadão comum, que precisa de conhecer a lei em que vive.