30 DE JUNHO DE 1971 2293
imagem do sofrimento totalitário e apresenta-lo, em cores carregadas, como exemplo eterno do mal.
Talvez que em nenhuma outra matéria resulte tão evidente a asserção de ser a política a «arte do possível». Não se ausenta o Governo, expressamente o diz, dia linha de liberalização dia vadiai pública portuguesa. Progredindo nela mia medida do possível, não pode, porém, deixar-se desarmar na luta sem quartel que, por formas novas e insidiosas, em todos os campos e com violência antes
insuspeitada, é movida contra a sociedade civilizada e os alicerces em que necessàriamente ela assenta.
Não podemos virar costas às fronteiras do possível em nome de aspirações utópicas. Li algures que uma das razões por que os movimentos utópicos, sobretudo os esquerdistas, adquirem reputação de dinamismo é a facilidade com que, exclusivamente quando estão fora do Poder, ultrapassam as fronteiras do possível e ignoram as limitações que são inerentes a toda a situação concreta.
Para um certo «gauchismo» utópico o estado presente é sempre obliquamente olhado como imperfeito e a realidade que se vive sempre incompleta. E por todas as vias, sobretudo as revolucionárias, se procura completá-la, em busca da impossível coincidência absoluta entre o que é e o que devia ser. E- assim o espírito crítico, à partida construtivo e gerador de progressos sociais desejáveis, descamba, por incurável exagero, em espírito de negação das realidades, logo utópico e revolucionário, de que o Maio de 1968 foi, em França, a natural consequência.
Deixemos, porém, a filosofia ... O que parece que seria natural, perante o sentido das inovações propostas e dos progressos manifestos, que já referi, no domínio da liberalização - o que seria natural, dizia, era, pelo menos, um movimento de agrado. Ao verificar-se o contrario, ser-se-á levado a identificar tal atitude com a dos utopistas puros, que recusam mesmo as modificações favoráveis à sua causa, desde que não sejam integrais e absolutas.
Não entrarei análise do que mesta matéria é divergente na proposta e nos projectos que nos estão submetidos. O sentido da liberalização que fica bem frisado ser o desta proposta e a prudência e segurança com que se trilham os caminhos em que a liberalização se desenvolve, garantindo que, sem prejuízo desta, a ordem e tranquilidade da vida portuguesa serão asseguradas, permitem-me concluir sem hesitação ou dúvida pelo apodo que devem merecer à Câmara as sugestões do Governo.
7. Sendo o anafe importante e delicado aspecto da proposta o que respeita ao Estatuto das Províncias Ultramarinas, o sentido claro do debate até aqui decorrido dispensa-me de a ele me referir muito desenvolvidamente, mas
dedicar-lhe-ei, mesmo assim, algumas palavras.
Quisera eu, oeste momento tão delicado da vida nacional, fadar a tal respeito uma linguagem que traduzisse, na sua cristalina transparência, a singeleza com que, tal como as vejo, se desenham no horizonte do nosso presente e do nosso futuro, as ideias e as intenções do Governo, consubstanciadas ma proposta d
Dirigindo-me apenas e a todos os que estão de recta intenção, porque aos outros não valerá a pena explicar coisa alguma, direi o que foram os meus próprios raciocínios sobre a proposta do Governo, na parte que respeita ao ultramar e que, em minha opinião, repito, constitui, de longe, a mais importante no contexto de todas as alterações constitucionais sugeridas.
Faço-o apenas com um depoimento mais, já que tudo quanto aqui foi dito, sobretudo o que, com conhecimento e propriedade, foi dito pelos Deputados ultramarinos, permite que se tenha o assunto por esclarecido.
8. Á ideia-força da proposta de revisão, na parte relativa ao ultramar, é, continuada da Constituição de 1933, a do carácter unitário do Estado Português.
A figuração jurídica do Estado unitário, com constituição única elaborada por um órgão central, donde decorrerá toda e qualquer descentralização de poderes, é tão nítida nos textos vigentes e nos que são submetidos à Assembleia que seria ociosa, no domínio da técnica constitucional, a demonstração de que assim era e assim continua a ser.
Quais então os fundamentos e qual o efectivo conteúdo do que pretende o Governo?
Governar foi, é e será sempre equilíbrio delicado entre o presente e o futuro, interessando comunidades inteiras. E uma virtude entre todas avulta nesse complexo de virtudes que desenham o perfil incisivo do governante autêntico: a virtude, mais essencial que nenhuma outra, de um absoluto e desassombrado realismo.
Não se governa com utopias. E esconder a cabeça na areia é, em política, a forma mais rápida de suicídio de um povo. Estando em causa a sorte de cada um, no quadro mais amplo do destino do conjunto e com repercussão irreversível na vida das gerações futuras, o integral respeito das realidades é a primeira norma da ética governativa.
Poderá perdoar-se tudo a um governo - menos que faça tábua rasa do real e que lhe sobreponha as suas apriorísticas concepções das coisas e dos factos. Em política «o que é, é» - por muito que nos custe e por mais que devesse ser outra coisa. Não vale a pena fechar os olhos e continuar a avançar como se a muralha impenetrável dos fenómenos de todo em todo não existisse.
O real marca, por um lado, o trilho do necessário e, por outro lado, a fronteira do possível. São essas, no enquadramento dos valores históricos e do destino tendêncial de cada país, as baias de toda a governação consciente. Governar é, em suma. combinar valores com realidades: realizar os primeiros na carne viva das segundas. E tão estulto e criminoso seria desprezar os valores que, na raiz das coisas, exprimem a mesma essência da Pátria, como ignorar as realidades em que eles hão-de materializar-se e que, naturalmente, condicionam e limitam as suas formas de concretização.
Por conseguinte, política realista, inserindo avisadamente o desejável no possível, sem fugir à vinculação do necessário onde ele definitivamente se impõe.
E a realidade, Sr. Presidente e Srs. Deputados, é, antes de mais, a de um todo nacional fragmentado em numerosas regiões geogràficamente dispersas pela Terra inteira. A individualidade de cada uma dessas regiões distintíssimas começa, assim, por ser física - a mais palpável, se bem que não necessariamente a mais relevante no domínio ontológico. Moçambique, Timor e Cabo Verde não são como um Mezzogiorno duvidoso numa Itália contínua ou uma Catalunha inventada numa Espanha inin-