12 DE FEVEREIRO DE 1993 1393
justiça. Ora, a solução pêra a morosidade da justiça não está nas restrições dos direitos dos cidadãos, nem esta medida terá o efeito de acelerar a justiça. Para além disso, a justiça, de facto, deve ser célere mas sem beliscar aqueles direitos que se consideram necessários para garantir um verdadeiro acesso ao direito.
Assim, uma das razões invocadas pelo Governo para a alteração não pode ser atendida. Aliás, o relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, não por estes motivos que apresentei mas por outros, também refere que não pode invocar-se a prontidão da justiça para tirar um grau de jurisdição aos cidadãos. E foi um relatório aprovado por unanimidade!
A proposta de lei do Governo, em nossa opinião, tem de ser encarada de outro angulo, uma vez que não pode afirmar-se - e nós não o fazemos - que o acesso ao direito e aos tribunais compreende sempre o acesso a todos os graus de jurisdição. Nós não afirmamos isso!
Para avaliarmos da bondade ou não da proposta de lei, creio que teremos de saber se ao cidadão, em matéria de tributação e de processo tributário, estão garantidos os seus direitos perante a administração fiscal e se as garantias existentes permitem avançar para a supressão de um grau de jurisdição.
Um dos direitos do cidadão, e também do cidadão contribuinte, é o direito à certeza e à segurança jurídica. Ora, em Direito Fiscal continua a navegar-se num mar de incertezas.
A administração fiscal pretende criar direito através de instruções, circulares e regulamentos internos. Por vezes, através de circular, regulamenta quase integralmente um regime jurídico tributário, faz nascer obrigações para o cidadão ou restringe mesmo os seus direitos definidos previamente em lei.
As circulares, que, aliás, não tem eficácia de lei, surpreendem os cidadãos, na altura em que lhes são levantados autos de notícia ou quando lhes cai em cima dos ombros uma liquidação adicional, e surpreendem os advogados.
Não admira assim que contra esta aparência de direito, contra este «direito» que já foi intitulado de direito circulatório, por basear-se em circulares, reajam os cidadãos, como verdadeiros arautos dos princípios constitucionais, contra as distorções do sistema complexo e pouco claro, que privilegia uns em detrimento de outros, que cria iniquidades excessivas precisamente em relação àqueles que, como diz Francisco de Sousa Câmara na Revista de Direito Público, não têm capacidade de intervenção activa nos meios políticos, que não têm possibilidades financeiras para mobilizar a opinião pública ou para apresentar contrapartidas que o Governo quer ver satisfeitas.
Estamos, de facto, numa área do Direito, o Direito Fiscal, que, como diz Jean Claude Martinez, é uma das disciplinas jurídicas mais aleatórias, é o jogo do poder e do dinheiro, do» fins e dos meios, do indivíduo e da sociedade, da liberdade e da servidão.
Face a esta situação e à incerteza jurídica que se abate, sobretudo, sobre os que, praticamente, não tem direito à informação, os que não fazem parte de lobbies, 6 óbvio que esta proposta de lei do Governo carece de justificação.
Num mar de incertezas e arbitrariedades, a garantia de um amplo direito ao recurso mitigará a desigualdade em que o cidadão se encontra perante a administração fiscal. Desigualdade que se acentua e atinge mesmo proporções de escândalo se atentarmos no que se passa no processo tributário.
Se compulsarmos a realidade dos tribunais fiscais e o próprio Código de Processo Tributário, que, recente embora, acentua a iniquidade do sistema, verificamos que o cidadão se encontra no processo tributário com armas desiguais face à outra parte no processo - a administração fiscal.
Ao representante da Fazenda Pública, figura consagrada legalmente, são assegurados poderes que se confrontam com princípios constitucionais.
Ele, que é parte interessada, que representa a administração fiscal, chega mesmo a proibir advogados - e isto já me aconteceu a mim! -, com procuração nos autos, de consultar processos de execução fiscal; ele, que é parte interessada, exerce a acção penal no que toca aos ilícitos de mera ordenação social, quando tal competência, pela lei fundamental, pertence ao Ministério Público; ele, o todo poderoso representante da Fazenda Pública, detém, segundo o actual Código de Processo Tributário, funções de juiz auxiliar; ele, que é parte interessada, profere despachos de aperfeiçoamento, preside a diligências de prova -para ouvir a prova da parte contrária -, avalia da idoneidade da caução prestada para suspender a execução, indica os valores por que hão-de ser postos em praça os bens penhorados e tantas outras competências que podíamos vasculhar no Código de Processo Tributário!
Para agravar ainda o peso do «intendente», o peso da administração fiscal - e como eu disse, há pouco, tudo isto está no Estatuto, não foi alterado, aliás, quem tem prática de tribunais sabe que assim é -, os funcionários de secretaria dos tribunais tributários de 1.ª instância e de 2.ª instância, segundo o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pertencem aos quadros do Ministério das Finanças e regem-se pelo respectivo Estatuto!
Estes funcionários, por um lado, são obrigados a cumprir os despachos, as sentenças ou as ordens dos juízes e, por outro lado, estão vinculados ao dever de obediência às ordens do representante da Fazenda Pública. E em caso de conflito entre duas ordens opostas emitidas por estas entidades, ou seja, entre a ordem de um juiz e a ordem de um chefe de repartição de finanças, é o Sr. Ministro das Finanças quem decide.
É assim, lamentavelmente, que se trata a independência dos tribunais fiscais! Independência sobre a qual se tripudiou durante largos anos com a não existência de agentes do Ministério Público junto dos tribunais tributários de 1.ª instância, entorse que só muito recentemente foi colmatado.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: Bem andaria o Governo se, celeremente, corrigisse as, distorções que se verificam na administração fiscal e nos tribunais fiscais; se, por exemplo, na prática, garantisse amplamente aos cidadãos de mais fracos recursos um efectivo direito ao apoio judiciário; se corrigisse, por exemplo, o princípio da lei segundo o qual, em muitos destes processos, não é preciso constituir mandatário, que parecendo uma protecção ao cidadão, de facto não é. Bem pelo contrário!
De tudo isto são vítimas os cidadãos. O Governo vem, quanto a nós, propor uma medida que não se enquadra em todo o restante quadro atrás descrito e pretende privar os cidadãos de um grau de jurisdição, cuja manutenção, em nosso entender, se justifica como reforço das garantias de defesa de quem combate a administração fiscal com armas desiguais.