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18 DE MARÇO DE 1993 1729

ser contido. Lembro-me do que senti ao chegar até mim "a sua queixa das almas jovens censuradas", autêntico grito de insurreição contra o rascismo. Eu estava no exílio e comeram-me lágrimas pelo rosto.
Natália sentia fascínio pela meditação sobre a história. Não porque houvesse nela vocação para o estudo da história. O que a atraía no passado era o mistério que explicava a origem das civilizações, o caminhar do homem, a possibilidade de entendimento, por mínimo que fosse, da luta dos povos pela Uberdade, o desafio ao inelutável.
Para muita gente, a sua linguagem, na poesia como na prosa, ou na mais trivial das intervenções parlamentares, expressava uma atitude aristocratizante perante a cultura. Discordo. O barroquismo verbal de Natália era nela tão espontâneo e límpido como as cascatas da montanha despenhando-se de altos penhascos.
Contemplando a vida como palco do imenso teatro onde se inventa e cumpre o destino do homem, ela foi sempre sincera A pompa de Natália, o seu culto do gesto e da linguagem quase agressivamente florida aparecem-me como indissociáveis da sua identificação com mundividências remotíssimas. Moderna, por vezes roçando o surrealismo, Natália Correia sentia-se, numa parcela daquilo que era, mais próxima de Sófocles ou de Esquilo do que da contemporaneidade.
Atrevo-me a dizer que a sua obsessão pelo mundo greco-romano ajuda a compreender a contraditória, complexa, quase torturada relação que manteve com o Parlamento - uma relação de amor-repulsa.
Nós, tentando compreendê-la, soubemos amá-la e admirá-la. Sendo, em muitos aspectos, a antítese do espírito desta Casa, Natália Correia fez dela, durante largos anos, uma segunda residência - na acepção nerudiana da palavra - para o seu batalhar por causas justas. Foi bom tê-la aqui.
Parafraseando outro poeta, ouvi-a dizer uma vez-fomos amigos desde a juventude, há quase meio século - que o futuro é antes de mais um infinito espaço vazio.
Ao dizer-lhe adeus em nome dos Deputados comunistas, já lhe escuto o canto a romper o silêncio do espaço sem fronteiras.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Adriano Moreira.

O Sr. Adriano Moreira (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Natália Correia nasceu em 1923. Não vai ser possível escrever sobre a mudança da sociedade portuguesa em geral, e de Lisboa, e do ruralismo dessa época para os desafios dos modelos das sociedades industriais, pós-industriais e europeias deste fim de século, sem referir a intervenção dinamizadora que lhe pertenceu.
O conceito actual de igualdade de direitos, com formulação normativa e consagração constitucional, assenta num comportamento desafiante das discriminações de algumas mulheres, entre as quais, as que pela década de 40 representavam os valores da Uberdade do espírito, da beleza, da irreverência e de humaníssimas insubmissões, a generalidade reconhecia Natália Correia como uma referência essencial. Foi uma das mulheres símbolo dos jovens da geração que, com ela, está a despedir-se da vida, neste fim de século. Não é altura de grandes notas biográficas, mas julgo que deve recordar-se, em relação com a sua rebeldia a partidos, a disciplinas e a regulamentos, de que tantas vezes deu provas neste Parlamento, o seu apego à cultura do Divino Senhor do Espírito Santo. Era talvez a maior estudiosa, ao lado desse grande português que é Agostinho da Silva, da herança de Joaquim de Flora (ou Fiore), o franciscano da Calábria que, no século XII, assumindo-se como profeta, acreditava poder dividir a história em três idades, a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo, esta última chamando os homens a uma vida puramente espiritual, inaugurada por Benedito de Núrsia, e com final coincidente com o fim do mundo: "Era uma época de amor, Uberdade, alegria e contemplação." Os livros de Frei Joaquim foram condenados em 1259. Os livros de Natália Correia tiveram outro destino no acervo da cultura portuguesa. Tinha sobre o frade a superioridade de ser poeta.
Na sequência do voto de hoje, a consagração que lhe estava a ser organizada nos Açores, que tanto amou, ganhou razões para ser ampliada. Deve ser uma consagração nacional.
Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Isabel Castro.

A Sr.ª Isabel Castro (Os Verdes): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Morreu Natália, e com ela, penso, muito daquilo que era a memória do que de mais rico este Parlamento teve como património. O património de uma mulher polémica, muitas vezes controversa, colérica muitas vezes, mas meiga, de extrema doçura, uma mulher que apaixonadamente se entregou à vida e que, surpreendentemente, a morte veio afastar de nós. Afastar fisicamente, porque a memória de Natália fica como sinónimo de alguém que foi irreverente e insubmisso; alguém que amou a liberdade, talvez como mais ninguém; alguém que ousou dizer, recusando falsos pudores, aquilo que outros não ousaram; alguém que sempre dedicou a sua vida à luta pela cultura, enquanto sinónimo de Uberdade e de luta por essa Uberdade. Por isso, hoje, penso que, mais do que as palavras, aquilo que fica é um testemunho extremamente rico de quem connosco partilhou este espaço e muitos outros e de alguém que ficará sempre como uma figura altamente prestigiante do que de mais rico esta Assembleia tem.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Mário Tomé.

O Sr. Mário Tomé (Indep.): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vamos sentir o peso da falta do seu pensamento fecundado pela alma apaixonada, tanto como do poema inerente a cada gesto que a Natália tornava sempre essencial mesmo quando excessivo. Mas o que nos deixa desamparados e pobres sem remédio é a sua ausência.
Sem ela, já esta Assembleia perdera uma pedra basilar do debate político: a simbiose, ou, como ela diria, o abraço permanente da política com a cultura, uma não podendo viver sem a outra. Mas perdera ainda muito mais: a sua intervenção arrebatada, inteligente, comprometida, frontal, demolidora e sem resposta, que apavorava os adversários.
Sem a Natália, o nosso país, a Mátria, fica sem uma referencia fundamental, pese embora a maravilha da sua obra eterna.
Dizer Natália Correia é nomear a Uberdade, com tudo o que contém de provocação e de coragem.
Natália Correia vivia intensamente, impulsionada por um profundo amor à verdade, que ela procurava sempre, mesmo quando parecia peremptória e definitiva, confrontando, criticando e questionando. Mas ia sempre mais longe, por-