2 DE ABRIL DE 1998 1855
um poder sem mordomias, nem ajudas de custo, nem despesas de representação, sem consultores de marketing e propaganda, feito de mangas arregaçadas e camisa em desalinho mordendo o pó e a lama das estradas.
Foi um tempo difícil, onde a impreparação técnica e política dos seus intérpretes conseguia ser ultrapassada pelo voluntarismo da entrega, pela dialéctica e pelo debate entre eleitos e eleitores, por uma luta sadia na defesa dos ideais, dos emblemas ou das terras de cada um, mas com um sabor a disputa minimamente justa e equilibrada. Uma disputa feita de suor e de braço onde, na sua maioria, os candidatos às eleições faziam a festa, deitavam os foguetes e apanhavam as canas, o que equivalia por dizer que redigiam os programas, faziam os comícios e acabavam altas horas da madrugada a colar cartazes e a pintar paredes.
Cometeram-se erros e desvios, certamente, mas julgo adquirido por grande consenso nacional ter sido o poder local, a par da democracia e da liberdade, uma das grandes concretizações do 25 de Abril. Não se entenda nesta evocação, o travo saudosista de quem ficou preso nos arreios do passado. Sou um homem deste tempo, que viveu, que se transformou e que também participou na transformação da realidade passante. Mas há um momento em que temos que parar para reflectir, e por vezes gritar: basta!
Durante duas décadas de serviço no poder local, já fui quase tudo o que se pode ser: vereador, presidente de câmara, presidente de assembleia municipal, candidato a uma assembleia de freguesia. Fui um dos fundadores da Associação Nacional de Municípios Portugueses, onde desempenhei, durante muitos anos, funções de responsabilidade, essa mesma Associação, que se reuniu na semana passada em Congresso, no meu concelho natal. É a Associação dos vencedores das recentes eleições autárquicas de 14 de Dezembro.
Um Congresso onde se discutiram lugares, mais competências, mais dinheiro, mais autonomia, alguma regionalização. Um Congresso onde ninguém se apercebeu, nem estava disposto nem disponível para analisar a perigosa deterioração dos pilares democráticos em que assenta o seu próprio poder.
Uma eleição democrática pressupõe, no mínimo, e em termos teóricos, igualdade de acessos e de oportunidades entre as diferentes candidaturas e candidatos.
Mas que igualdade pode existir, enquanto for permitido a um autarca que se recandidata, por exemplo, à presidência de uma câmara o poder de, até ao dia da eleição, atribuir e distribuir subsídios. aos cheques e às centenas, a todas as instituições sociais, desportivas, educativas e culturais do seu concelho?
Ou o poder de adjudicar e lançar, em sofreguidão de última hora, centenas de obras para tapar os buracos e as inacções de um mandato inteiro, mesmo sabendo não dispor de tesouraria suficiente para as pagar, que atrás virá quem feche a porta?
Ou o poder de mandar executar gigantescas campanhas publicitárias a pretexto de acções específicas do município, glorificando a sua própria pessoa?
Ou o poder de editar às dezenas de milhar, luxuosas revistas e brochuras evocativas da epopeia autárquica dos titulares do poder, pagas pelos cofres municipais?
Ou o poder de distribuir em plena rua, em época de generosidade municipal, cabazes de Natal aos milhares, sem outro critério ou rigor que não seja o da caçada eleitoral?
Ou o poder de admitir novos funcionários em plena campanha, prometendo o emprego a muitos outros para o dia seguinte às eleições?
Ou o poder de enviar viaturas e funcionários do município, a distribuir gratuitamente latas de tinta a quem quiser aproveitar para pôr a fachada da casa em dia?
Ou o poder de atribuir casas económicas em véspera eleitoral, prometendo mais tectos a centenas de outras famílias, submissamente chamadas aos paços do concelho?
Ou o poder de abrir as porias da conveniência e do sorriso em plena campanha eleitoral, dentro dos edifícios municipais, atendendo tudo e todos quantos ali se dirigem, numa propaganda contínua e sem pudor?
Ou o poder de forçar a aprovação de projectos urbanísticos, em desacerto de prazos, de pareceres e de práticas?
Já não bastava a desigualdade congénita da diferente capacidade entre poder e oposição para angariar meios financeiros para campanhas eleitorais cada vez mais milionárias, mais sumptuosas e sofisticadas, onde nada parece faltar, e o esbanjamento roça o escândalo e a provocação. O que choca, o que é aberrante, o que se toma escandaloso, é este desvio democrático e este abuso de poder que consente que, à custa de um orçamento público, à custa do dinheiro de todos os contribuintes, à custa da logística e do pessoal de uma autarquia, se beneficie claramente um dos lados, a posição dominante, em detrimento de todos os outros.
É evidente que a nem todos os autarcas se aplica este tipo de procedimentos, mas também é verdade que este disparo crítico assenta ao comportamento de muitos governantes que não resistem a interferir mesmo em eleições alheias. Mas digo bem alto que se está a ir longe demais, rumo a um caciquismo moderno, provido de meios substanciais, de poderes, competências e atribuições jamais atingidos. o que, a não haver controle, pode conduzir ao aviltamento da própria democracia. Urge colocar-lho um limite, que pode passar, nomeadamente, por transpor para o quadro jurídico eleitoral das autarquias aquilo que a Lei Eleitoral da Assembleia da República já prevê no seu artigo 9.º. Ou seja, a obrigatoriedade de suspensão de mandato dos autarcas com funções executivas, que se recandidatem a qualquer órgão do seu município, desde a data da apresentação de candidaturas até ao dia das eleições.
Posto que, se um presidente de câmara que se candidata a Deputado, é obrigado a suspender o mandato, por se considerar que intervém activamente no processo eleitoral, então, por maioria de razão, essa incompatibilidade adquire importância relevante se se estiver a recandidatar em eleição do mesmo foro. E os órgãos executivos deverão, desde a apresentação de candidaturas até ao dia da eleição, entrar em regime de gestão corrente.
Junte-se a este conjunto de questões o manto de hipocrisia e de mentira que envolve o limite desrespeitado de gastos em campanhas eleitorais e pré-campanhas cada vez mais prolongadas, urgindo uma verdadeira e transparente Lei de Financiamento dos Partidos e teremos, Srs. Deputados à Assembleia da República, matéria bastante para debate parlamentar urgente e importante.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta não é a intervenção de alguém que ainda não interiorizou a perda de uma eleição. Não é uma posição reactiva, tornada a quente, por entre o fumo da refrega eleitoral e a decepção da contagem dos resultados. Não! Por aqui passaram deliberadamente três meses para o assentar da poeira eleitoral e dos sentidos para o amansar da conflitualidade. O que penso hoje sobre estas questões, já pensava há três anos. Só que a situação tem vindo a piorar.
E não ficaria tranquilo com a minha própria consciência se não dissesse o que me vai na alma, se não ditasse