I SÉRIE-NÚMERO 48 1762
Apesar do empenho na altura manifestado por Sua Ex.ª o Presidente da Assembleia da República e da disponibilidade que, estou seguro, encontraria da vossa parte, pude verificar como há presentemente, vinculados que estamos à estrita observância das disposições constitucionais, dificuldades objectivas de a Assembleia da República responder às situações que exijam uma deslocação urgente do Chefe de Estado ao estrangeiro.
Não há aqui, da minha parte, a manifestação de uma qualquer intenção de crítica e, muito menos, de atribuição ou procura de responsabilidades, mas tão-só a constatação de que existe o seguinte problema objectivo que pode e deve ser resolvido no quadro da referida cooperação institucional: há situações em que os dois órgãos constitucionais a quem a Constituição atribui a competência de assentir à ausência do Presidente da República do território nacional - a Assembleia da República e a sua Comissão Permanente - não têm condições, no actual quadro normativo e funcional, para se reunirem e decidirem em tempo útil.
Afigura-se-me claro que, tratando-se, por um lado, de competências constitucionalmente fixadas e atribuídas à Assembleia da República e regulando expressamente a Constituição, por outro lado, a eventualidade de substituição no seu exercício por parte da Comissão Permanente, não há margem para delegações infra-constitucionais de poderes, sob pena de violação do princípio da tipicidade do exercício do poder político e da proibição de delegações de poderes não constitucional ou legalmente previstas. Muito menos teria sido admissível que uma eventual substituição não constitucionalmente prevista se tivesse feito a favor de órgãos de criação meramente regimental que não dispunham de atribuição de qualquer competência para o efeito.
Na verdade, as disposições constitucionais em causa revestem-se de uma clareza e rigor meridianos, como não podia, de resto, deixar de ser, atendendo à estabilidade que lhes advém de uma existência ininterrupta de quase dois séculos e à gravidade das consequências previstas para a sua infracção.
A Constituição trata o problema das ausências do Presidente da República do território nacional de uma forma tão estrita que qualquer deslocação oficial do Presidente da República ao estrangeiro sem o assentimento da Assembleia da República ou, se esta não estiver em funcionamento, da sua. Comissão Permanente, envolve, de pleno direito, a perda do cargo.
Parece óbvio que, independentemente do juízo que cada um de nós faça sobre a bondade destas disposições, há, na singularidade e severidade deste regime, uma clara intenção normativa reiteradamente acolhida pelo legislador constituinte que, todos estaremos de acordo, não pode deixar de ser tida em conta, designadamente por quem jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição. Para além do mais, sendo o órgão que pede o assentimento da Assembleia da República o mesmo sobre quem recai a sanção prevista para o incumprimento dos procedimentos constitucionalmente fixados, ele não poderá deixar de, em função da gravidade extrema da sanção, colocar o máximo rigor na avaliação do preenchimento dos requisitos exigidos.
Sendo estes pontos de honra em que, seguramente, confluem a Assembleia da República e o Presidente da República, há, todavia, motivos bastantes para ponderarmos a razoabilidade e fundamentação de uma tal rigidez constitucional.
Este regime justificava-se no quadro histórico em que teve origem - o das monarquias constitucionais do século XIX e face à polémica suscitada com a saída da corte para o Brasil em 1807 - e, nessa medida se compreende que, tendo-se, entretanto, convertido em legado firme do constitucionalismo português tenha, enquanto tal, sido acolhido unanimemente na Constituição de 1976.
Hoje, porém, e verificados acontecimentos como os que suscitam esta mensagem, creio haver motivos para reflectirmos conjuntamente no facto de esse regime constitucional não encontrar praticamente paralelo no direito constitucional comparado - exceptuando quase apenas as constituições de alguns dos Estados africanos lusófonos e ser estranho aos regimes e sistemas de governo que apresentam maiores afinidades com o sistema português.
Sobretudo, é difícil imaginar como uma tal rigidez é compatibilizável com as necessidades de representação da República Portuguesa nas condições da vida política actual, tendo em conta, em geral, as responsabilidades constitucionais que incumbem ao Presidente da República e, designadamente, algumas das suas atribuições específicas, como as que se referem a Timor e Macau.
É certo que, nas situações de maior gravidade, seria sempre possível invocar um estado de necessidade constitucional para ultrapassar a rigidez das disposições constitucionais, mas não sendo esse o caso - e a situação verificada no fim-de-semana, apesar do significativo interesse que para o Estado português revestia a deslocação não o era manifestamente - há aqui um risco de bloqueio ou mesmo de inviabilização definitiva das deslocações que, no interesse nacional, devam realizar-se imediatamente ou com a maior urgência.
A disponibilidade que a Assembleia da República sempre tem manifestado para resolver esse tipo de dificuldadès dá-me a certeza de que VV. Ex.as me acompanham nestas preocupações e se empenharão na resolução do problema em ordem a evitar novos constrangimentos no futuro. E, tal como eu, seguramente consideram que só é politicamente aceitável uma solução juridicamente sustentada e só é juridicamente possível uma solução que seja constitucionalmente adequada.
As responsabilidades que todos partilhamos na garantia da força normativa da Constituição não se compadecem com hipotéticas soluções encontradas no mero plano da mera condescendência institucional, do consenso político manifestado informalmente em cada situação concreta ou da amabilidade pessoal. Soluções desse tipo seriam, a meu ver, não só institucionalmente inadequadas como incompatíveis com a gravidade da opção, eventualmente discutível, mas sem dúvida querida pelo legislador constituinte.
Sendo certo que a Constituição exige que o necessário assentimento às deslocações do Presidente da República seja dado pela própria Assembleia da República, pela sua Comissão Permanente, parece-me que existem, mesmo no actual quadro constitucional, as condições jurídicas para superar satisfatoriamente as dificuldades mencionadas. Além do mais, há necessidade de o fazer, já que o problema se coloca não só relativamente às deslocações do Presidente da República mas em todas as situações em que a Constituição exige uma decisão da Assembleia da República quando esta não se encontra reunida nem pode reunir imediatamente.
Permita-se-me que considere, a título de exemplo, a eventual necessidade de, no início de um fim-de-semana, declarar o estado de emergência, para que se exige igual-