Disse, ontem, o Primeiro-Ministro, Eng.º António Guterres, que a reforma fiscal é sempre um momento de verdade, pressuposto com o qual quero manifestar o meu total acordo. Mas anunciou também que a sua bancada seria sempre a mais disponível para essa reforma e esse, Sr. Primeiro-Ministro, foi um momento de inverdade. A bancada do Governo não esteve disponível para medidas de reforma fiscal sensatas e necessárias no Orçamento do Estado para 2000, como não esteve depois, ao longo de toda a sessão legislativa, pois nenhuma medida foi proposta pelo Governo em condições de ser discutida e votada nesta Assembleia.
A reforma fiscal tem sido, até hoje, um penosíssimo processo de arrastamento, de adiamentos envergonhados, uma sucessão interminável de erros, de promessas e de faltas de cumprimento. Com medidas avulsas para contentar este ou aquele sector, mantém-se a obscuridade da fraude fiscal generalizada no nosso país. Promessas eleitorais triunfantes traduziram-se sempre em «saídas de sendeiro» e a resistência tenaz à pressão da opinião pública, favorável à justiça fiscal, que exige uma reforma fiscal, teve como conclusão nada ter sido discutido, nada ter sido decidido e nada ter sido preparado.
Este interminável processo de balanceamento entre a esquerda e a direita conduz à ausência de uma estratégia global e coerente, convidando-se uma comissão e desfazendo-se outra, despedindo-se uma e preparando-se outra - tudo se tem mantido, ao longo de cinco anos, numa situação de tabu! E nisto, Sr. Primeiro-Ministro, cometeram o Governo e a maioria desta Assembleia dois erros fundamentais: um primeiro, não cumprindo as promessas de 1995, repetidas depois nas eleições de 1999. Porém, um erro maior ainda foi o de manter uma situação de injustiça. O Governo escolheu não cumprir as promessas eleitorais, porque apelou a um pacto de justiça fiscal, convocou uma maioria, pediu confiança para uma reforma fiscal e, no entanto, quando devia ter cumprido aquilo que prometeu, o Estado colocou-se nessa situação extraordinária, que foi a de ser o caso único de um roubo em que a vítima é cúmplice do ladrão. E dou-lhe, Sr. Primeiro-Ministro, quatro exemplos do facto de o ano passado ter sido um ano pior na fuga ao fisco do que todos os exercícios anteriores.
Primeiro exemplo: a dívida fiscal em execução era, recentemente, de 452,8 milhões de contos; no ano passado, perdeu-se metade - e vão 200 milhões de contos! Foi o momento da verdade para uma administração tributária que não tem os instrumentos e, muitas vezes, não tem vontade de cumprir as suas obrigações.
Segundo exemplo: ao longo deste ano, o Estado tem insistido em financiar-se rapidamente pela venda acelerada, como nos exercícios anteriores, do seu património. Em 1998 e em 1999, sendo este o último ano para o qual há dados completos, o Estado colocou na praça valores da ordem dos 14,6 milhões de contos, que vendeu, por ajuste directo ou por leilão, por 2,8 milhões de contos. Ou seja, em dois anos, o Estado perdeu 12 milhões de contos, se confrontado com a sua própria avaliação do património. Este também foi um momento de verdade.
Este ano, temos um exemplo, entre muitos, que ressaltou e tem sido discutido publicamente, que é o da Lanalgo. A Lanalgo são 1500 m2, na Rua da Prata, que foram avaliados pelo fisco, em função de uma dívida que transmitiu a propriedade para o Estado, em cerca de 1 milhão de contos. Foi, no entanto, vendida por 90 000 contos, por um ajuste directo que tem essa particularidade extraordinária de o Governo não saber sequer a quem vendeu. É que o Sr. Ministro das Finanças não está em condições de nos dizer quem é a Tayama Investments, com sede em Gibraltar. Não saberá, portanto, em função disso, qual é o percurso deste património e nem poderá, dessa forma, justificar a razão de um ajuste directo que fez o Estado perder quase 1 milhão de contos.
Terceiro exemplo: no off-shore da Madeira, segundo o Orçamento do Estado aprovado para o ano corrente, perderam-se, em benefícios fiscais, 234 milhões de contos. Esse é também um momento da verdade da nossa política, porque, desta forma, vulnerabilizámo-nos a pressões internacionais, fazendo aparecer o nosso país, como muitos outros, como uma das portas para a fuga ao fisco em países vizinhos ou com os quais temos as melhores relações. E não podemos, por isso, surpreender-nos se já quatro países, a Holanda, a Suíça, os Estados Unidos e o Brasil, excluíram as entidades registadas na zona franca da Madeira, no seu sector internacional e financeiro, do âmbito do acordo sobre dupla tributação que celebraram com Portugal. Não podemos, por isso, surpreender-nos que a Comissão Europeia, no dia 18 de Julho deste ano, ataque, como ajudas ilegais, os benefícios que são concedidos na zona franca da Madeira. A pressão internacional, que se multiplica, por não regulamentar, por não regular, por não impor a transparência, penaliza o nosso país e coloca-nos como réus de uma acusação de uma liberdade de circulação de capitais sem limites, sem regras, sem transparência e sem seriedade.
Mas o pior de tudo, Sr. Primeiro-Ministro e Sr. Ministro das Finanças, é que esta situação, em que não há reforma fiscal, em que se vende o património ao desbarato, em que não se cobram as dívidas fiscais e em que se permite que a pequena e a grande corrupção vão imperando para substituir as regras da transparência na Administração e na decisão fiscal, essa situação, repito, impõe um descontrolo absoluto dos deveres e das responsabilidades do Estado.
Diz a Inspecção-Geral de Finanças que, feitas as contas sobre a Expo 98, 19 em cada 100 milhões de contos, praticamente 20% da despesa, não têm justificação contabilística satisfatória.
Diz o Tribunal Constitucional sobre a Conta Geral do Estado de 1998 que a contabilização da receita não é fiável e que não há registo do destino de cheques em alguns dos bairros fiscais mais importantes de Lisboa, que é o exemplo citado pelo Tribunal Constitucional.
Por isso, Sr. Primeiro-Ministro, o que temos a perguntar-lhe - e esse é o sentido desta interpelação - é qual é a obrigação de um governo decente. Em nossa opinião, um governo decente tem de avançar com uma reforma fiscal global, que, com sensatez e coragem, corrija todas estas distorções.
Vozes do BE: - Muito bem!
O Orador: - Ora, isso foi o que o Governo não quis! No entanto, prometeu-o a esta Câmara… O Sr. Ministro Pina Moura, que agora vai dar conta da sua intervenção ao longo deste ano, prometeu-nos, no dia 23 de Dezembro passado, que, até Outubro, todas as iniciativas legislativas fundadoras da reforma fiscal estariam no Parlamento.
No dia 16 de Março, voltou ao Parlamento para nos garantir - e isso consta da pág. 1736 do Diário da