O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

2919 | I Série - Número 74 | 26 de Abril de 2001

 

autoritário, quando não totalitário. O processo de descolonização consumou-se; o Muro de Berlim caiu; o mundo soviético desmembrou-se; a guerra fria acabou; a bipolarização dos modelos políticos e económicos tendencialmente se reduziu à unidade e o modelo económico liberal pôs o pé, para a fotografia, sobre o cadáver do agonizante modelo económico centrado e colectivista.
De um momento para o outro, onde era a opressão foi a liberdade; onde era o dirigismo foi a livre competição; onde era a ditadura foram a representação democrática e o voto; onde era o pau mandado foi o cidadão; onde era o medo foi a distensão. E agora, finalmente, como nas histórias para adormecer as crianças, seremos felizes para sempre?
Eu sei que é de mau gosto duvidar disso num dia festivo como hoje. Pois não daria eu prova de algum juízo limitando-me a saudar mais uma vez, com a sinceridade de sempre, os heróicos capitães de Abril, que aceitaram o risco de morrer para que todos pudéssemos ser livres?
Eles foram autores de um feito histórico que poucos recusarão reconhecer, mas, como tantas vezes acontece, foram-no sem clara consciência, que não podem ter tido, de que viravam, não apenas uma página da história política portuguesa, mas, por simpatia, uma página da história política universal.
Abril serviu de inspiração e mote para que muitos outros povos oprimidos lhe seguissem o exemplo. A liberdade empunhou a vassoura dos Direitos do Homem e varreu do mapa-mundi dezenas de ditaduras que restavam. Que o diga esse «polegarzinho» teimoso e heróico que é o querido povo de Timor!
Pois nem assim tenho por indubitável que a liberdade e a democracia não voltem a ter regresso ou que o fantasma do Big-Brother seja só uma ficção do Orwell para uso televisivo. Será?
O primeiro refluxo democrático esteve causalmente ligado à depressão bolsista e económica dos anos 30 do século passado. Poderemos nós ter a certeza de que a euforia que reina no casino universal das bolsas, a raiar a mais colectivizada das paranóias, tem um sólido seguro de prosperidade ad aeternum nos famosos equilíbrios automáticos da «mão invisível», já que se lhe não conhecem instrumentos de regulação universal? Se temos, durmamos tranquilos.
Mussolini, Hitler, Salazar, Franco e outros adeptos do safanão a tempo e da mão pesada, basearam o seu poder, e desde logo a sua conquista, na defesa da ordem. A ordem como supremo bem, o autoritarismo repressivo como supremo remédio e o livre pensamento encarcerado no dogma.
Para serem mais convincentes, elegeram específicos culpados: os judeus, os comunistas, os negros, os incréus, e nunca encontraram dificuldades em fomentar os ódios mais direccionados e mais convenientes. Os ditadores nunca foram os únicos culpados.
Podemos nós ter a certeza de que não volta a repetir-se nas democracias modernas o receio da desordem, traduzida no aumento da insegurança e da criminalidade, na expansão dos tráficos ilícitos, no recuo da autoridade do Estado, na dissolução das famílias, na ineficácia das escolas, no apagamento dos valores e no vazio dos espíritos e em consequência disso uma nova apetência de mais ordem, mais repressão e mais autoridade?
Podemos nós ter por certo que os «hitlerzinhos» que voltam a ganhar votos nas arenas políticas não representam o perigo em germe do regresso de novos surtos epidémicos de autoritarismo, racismo e xenofobia? Se temos, continuemos a dormir tranquilos.
Com a população do Mundo a crescer à razão paranóica de mais 100 milhões/ano de potenciais trabalhadores à procura de emprego, já sem cancelas que os impeçam de procurá-lo em não importa que mercado e com a explosão informática a dispensar cada vez mais suculentas fatias de esforço humano, será que podemos alimentar a esperança de uma suave e pacífica transição da sociedade do trabalho - e do salário, como principal instrumento de repartição da riqueza - para a sociedade do lazer, já esgotada a margem da redistribuição do emprego que houver, pela redução do tempo de trabalho e pelo reforço da produtividade? Se podemos, continuemos a regar placidamente o nosso jardim.
Com a riqueza a concentrar-se em cada vez menos mãos e a pobreza e a exclusão social a expandirem-se por cada vez mais unidades de fome e de revolta, podemos nós continuar a abstrair da carga socialmente explosiva dessa mistura, potenciada pelo efeito multiplicador da informação universal, à espera do rastilho de outra revolução francesa, outra revolução soviética, ou outro Maio de 68? Se podemos, continuemos, tranquilamente, vidrados no nosso televisor.
Com os meios de produzir violência impune cada vez mais sofisticados, acessíveis, destrutivos e organizados, à mão de semear de qualquer fanático ou de qualquer patife e com as máfias do crime organizado a acumularem fortunas que, depois de lavadas, são investidas na economia legal, e convertidas em poder político, podemos nós continuar a confiar cegamente nos automatismos da regulação pelo mercado livre e universal - ou seja, de regulação nenhuma, como convém aos que o hegemonizam - convictos de que caminhamos para a harmonia universal? Se podemos, continuemos a navegar de ouvidos moucos aos «avisos à navegação».
Mas, se acaso entendermos que estas e outras tendências se identificam com as causas históricas dos fenómenos de refluxo das marés democráticas, com o consequente recuo das liberdades fundamentais, receemos o regresso dos mesmos efeitos e cuidemos de preveni-los com todas as forças da nossa alma.
Na história da civilização foram raras as conquistas definitivas. A democracia e a liberdade nunca o foram. Sê-lo-ão desta vez? É tentador acreditar que sim, mas não deixa de ser prudente admitir que não. Com a televisão universal, escola por excelência, a leccionar a vulgaridade, a competição, o irracionalismo e a violência; com a família incapaz de voltar a ser a primeira escola; com a escola oficial a cumprir penosamente a função de segunda; com a sociedade civil a questionar com gáudio o bem fundado do poder político, os seus órgãos e