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2920 | I Série - Número 74 | 26 de Abril de 2001

 

os seus agentes; com estes em inocultável processo de desgaste, senão de desadequação à era pós-moderna, pós-ética e a muitos títulos já paranacional; com o cidadão comum entre indiferente ao exercício dos direitos que tem e aparentemente ansioso por exercitar os que não tem; com o indivíduo desquitado de valores e progressivamente de deveres, em plena vaga de amoralismo triunfante; com uma relação egoísta no lugar de uma relação solidária; com as tradicionais formas de legitimação democrática em processo de erosão preocupante; com frequentes apelos a mais repressão como única resposta a mais insegurança, inclino-me a admitir que pode estar uma vez mais em gestação o mesmo caldo de cultura em que, no passado, a ordem foi julgada mais valiosa do que a liberdade.
Despeço-me deste tema recomendando aos mais confiados uma reflexão sobre a Primeira República. Aprende-se muito revisitando anteriores fracassos e, naturalmente, relendo Maquiavel. E fico-me por aqui, não vá o meu querido amigo António Guterres dizer-me que, mais uma vez, perfilhei uma escatologia de fim do Mundo!
A verdade é que, com o mesmo Mundo, já morreram muitas civilizações e nada nos garante que a nossa seja imune a esse risco. Ela vai morrer e ele sabe isso, porque tem a paixão da História. Sabe também que, quando revelo preocupações e tento epidemizá-las o não faço sub speciae do nosso país em concreto.
Desse ponto de vista, não acompanho sequer o hipercriticismo radical de alguns comentadores políticos. Não temos, longe disso, o alto da desgraça. Os neo-candidatos a ditadores ainda não subiram acima das páginas de jornais sem leitores; os computadores ainda não deram cabo do nosso emprego, o produto vai crescendo ao nível dos padrões que nos são próprios, políticas sociais têm corrigido os ímpetos invisuais de uma riqueza que, mesmo quando sabe multiplicar, não sabe dividir. Somos uma democracia europeia não envergonhada e um Estado de Direito que nos não envergonha.
Mas é claro que não faltam áreas em que o progresso é lento e difícil, e até outras, que não são exclusivo nosso, como a da segurança individual, em que não podemos sequer falar de progresso. São áreas de crises civilizacionais sem pátria.
Só que este juízo sobre outros países que têm mais razões para se preocuparem, se não sobre a comunidade internacional toda ela, não me serve de consolação. Hoje, mais do que nunca, nenhum país se pode julgar a coberto do que de negativo acontece nos demais. A globalização é também isso.
Mas passa hoje também o 25º. aniversário da entrada em vigor da Constituição da República. Por feliz acaso, essa data coincidiu com a do reencontro do nosso país com os seus valores mais irrecusavelmente estruturantes: o amor à Liberdade, a opção pela Democracia e pelo Estado de direito, a fidelidade à República e aos seus sacramentos.
Sem negar que a Constituição de Abril nasceu datada - o que veio a ser confirmado pelas respectivas revisões -, debalde se pretenderá que nasceu da aliança da exaltação com o vazio.
A exaltação existiu, e melhor fora que não tivesse existido. De meio século de frustrada espera da democracia e da liberdade não podia esperar-se a indiferença ou a resignação. O seu regresso foi assim sublinhado pela embriaguês de uma conquista e o sobressalto de uma revolta.
Tive a felicidade de assistir, em plena Av.ª da Liberdade, ao primeiro reencontro colectivo dos Portugueses com os mais genuínos valores da sua identidade. Qual vazio!... Esses valores só encheram aquela «Ágora» impreenchível porque, durante meio século, tinham permanecido intactos na alma portuguesa.
A Constituição material, subjacente à futura Constituição escrita, revelou-se ali, na embriaguês da liberdade sem algemas, na espontaneidade da ordem sem gendarmes, na coesão das esperanças sem sombras, na harmonia dos cânticos sem notas fora do tom. Se a nova ordem pudesse ter sido assim!...
Não foi, nem podia. As rupturas constitucionais cobram alto preço. Tinham-no cobrado na dança infernal das Constituições liberais, antiliberais, protoliberais, da República e da ditadura que a derrubou. A Constituição de 1976 situou-se, assim, na linha de descontinuidade do constitucionalismo português e teve de ser parturejada numa encruzilhada de tensões e conflitualidades.
À saída de uma revolução que fragmentou a unidade ficta da componente militar; à saída de uma guerra colonial em três frentes, sem outro futuro que não uma humilhação militar numa delas, com todas as consequências desse desfecho nas demais frentes e na coesão das próprias Forças Armadas; à saída de uma situação de isolamento internacional, ultrapassada por arranjos compromissórios de impossível recusa; à saída de um processo de descolonização que dificilmente podia ter sido menos tormentoso, condicionado como foi por pressões, quando não imposições, militares e civis, internas e externas, quantas vezes contraditórias e quase sempre inelutáveis; à saída, pois, da perda da nossa extensão colonial e dos correspondentes equilíbrios económicos; à saída do regresso de centenas de milhar de cidadãos portugueses que viviam no Ultramar, e que, tendo perdido os seus haveres, as suas ocupações, os equilíbrios e o conforto das suas vidas, se viram condenados a recomeçar a partir do desespero e do zero.
À entrada do primeiro choque petrolífero, que fez vacilar as economias mais sólidas, e de todo desarticulou as economias mais débeis. Em plena oclusão de uma irreprimível euforia multipartidária que, num repente, pulverizou a possibilidade de qualquer homogeneidade ideológica ou coesão nacional, em plena erupção de ideais utópicas por longo tempo reprimidas.
Na sequência de sucessivos governos provisórios sem controlo parlamentar, heterocondicionados por um difuso poder popular de gestação espontânea e inorganizada; na sequência de uma grave crise presidencial, com acidentes como a crise Palma Carlos, o episódio pré-insurreccional do 28 de Setembro e o falhado golpe insurreccional do 11 de Março, que levou à substituição do Presidente que havia sido objecto de legitimação revolucionária.