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2 DE DEZEMBRO DE 2006

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I — As iniciativas atinentes ao combate à propagação de doenças infecto-contagiosas em meio prisional, e
respectiva concretização das mesmas, são de facto paradigmáticas de um «poder agir» de que nos fala
Aristóteles, in Ética a Nicómaco. Não o são contudo porque é «belo fazê-lo», mas sim porque é profícuo,
pertinente e urgente fazê-lo.
II — É desde logo necessário desmistificar a argumentação utilizada pela maioria daqueles que votam
contra este programa arguindo que a medida não passa de uma cedência do Estado perante o tráfego de
estupefacientes nos meios prisionais, o que seria o espelho da sua própria incapacidade para combater
eficazmente esse problema. Pese embora a aparente razoabilidade do argumento, a verdade é que este não
se coaduna com uma visão real e prática do problema, limitando-se a abarcar um campo teórico do «dever
ser» totalmente dissonante da realidade vivida no seio dos estabelecimentos prisionais.
III — Também não apresenta desmedida consistência hastear o argumento de que os estabelecimentos
prisionais têm como papel fundamental a reinserção dos reclusos, ou outros argumentos quejandos, como se
tal facto se anunciasse incompatível com o programa específico de troca de seringas nesses mesmos meios
prisionais, sendo que a medida tem por fim combater a propagação de doenças infecto-contagiosas e não
impedir a reintegração.
Senão vejamos:
Podemos ler no Preâmbulo do Código Penal de 1982 (revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março) o
seguinte: «O Código traça um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas
devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador». Mais à frente no TITULO III,
concernente às «consequências jurídicas do facto», no artigo 40.°, n.º 1 do Código Penal, podemos também
ler que: «A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração
do agente na sociedade.» Ora, daqui se retira naturalmente que resulta da nossa política criminal uma
axiologia que se prende com a necessidade da reinserção do indivíduo ex-recluso na sociedade, o que é
apodictimamente correcto.
IV — Porém, esta matéria obriga a avaliar outros factores; factores esses não menos importantes do que a
finalidade das penas e toda a política criminal subjacente. Neste campo é imperioso que olhemos mais
profundamente para o efeito criminógeno que resulta, invariavelmente, da inserção de um indivíduo (cidadão
recluso) na subcultura de um qualquer estabelecimento prisional.
V — Pretende-se com isto dizer que não é possível avaliar o problema ignorando o fenómeno da
dessocialização resultante de uma pena privativa da liberdade. Ou seja, o recluso ao ver-se inserido no meio
prisional é automaticamente privado das suas relações familiares, sociais, profissionais, etc., o que o torna
também mais vulnerável a qualquer efeito perverso resultante do contacto com o meio prisional. É-nos, pois,
permitido concluir que o efeito criminógeno será desde logo o reverso da medalha da inserção de um cidadão
num estabelecimento prisional;
Ora, se a esta condicionante adicionarmos o facto de esse indivíduo recluso ser toxicodependente, a
dimensão do problema agiganta-se substancialmente, o que nos leva a equacionar novos factores,
nomeadamente: a falta de volição desse indivíduo para iniciar em meio prisional uma hipotética desintoxicação
(tendo em conta os efeitos acima mencionados), a sua instabilidade psicológica e emocional, a incapacidade
patológica para encarar o seu futuro integrado socialmente, a falta de autodeterminação, os problemas de
saúde que na maioria dos casos já transporta consigo à data do início da reclusão, o direito à saúde, o direito
fundamental à vida (que não lhe estão vedados pelo facto de se encontrar a cumprir pena privativa de
liberdade), e, assim, a necessidade de reduzir ao máximo todos os factores de risco a que se encontra sujeito.
VI — É claro que o enfoque quanto à circulação de estupefacientes nos estabelecimentos prisionais deverá
deter-se no reforço das medidas de combate a esse tráfico, todavia ignorar a necessidade de que algo precisa
de ser resolvido, paralelamente, a esse combate, de modo a minimizar os riscos decorrentes de um consumo,
que sabemos — com certeza — existir é, salvo melhor opinião, incorrer num comportamento omisso perante
um «dever de agir».
O facto de não ter sido possível, até à data, erradicar dos estabelecimentos prisionais, em absoluto, a
circulação de estupefacientes não pode, nem deve constituir fundamento a uma passividade que ceda lugar à
indolência em detrimento de uma acção profícua, capaz de minimizar os danos decorrentes do consumo de
substâncias estupefacientes ou psicotrópicas injectáveis nos estabelecimentos prisionais, veículo de
propagação de doenças infecto-contagiosas nesse meio.
VII — Atente-se, pois, ao facto; e é um facto de que 40% dos reclusos consomem droga dentro dos
estabelecimentos prisionais, sendo que uma grande parte dessa percentagem consome cocaína e heroína
(injectável). Por outro lado, 34,2% dos reclusos são portadores de uma doença infecto-contagiosa. Dentro de
uma amostra de 12 889 reclusos, foram diagnosticadas 1040 infecções de HIV e 2925 hepatites, sendo que
654 são portadores de HIV e hepatites.
VIII — Posto isto, não parece ser o momento para nos escudarmos em argumentos falaciosos que nos
impeçam de respeitar direitos humanos fundamentais, independentemente, de estarmos no âmbito de
medidas a aplicar no seio do meio prisional. É, pois, nosso dever garantir aos reclusos toxicodependentes não
só a alternativa da cura, mas também o seu pleno direito à saúde e à vida, à semelhança daquele indivíduo
não privado da sua liberdade que, por exemplo, se dirige a uma farmácia para adquirir um kit de seringas com
o fim de se injectar livre da possibilidade de contrair HIV ou hepatite. E isto não significa capitular à circulação