24 | I Série - Número: 045 | 8 de Fevereiro de 2008
A realidade da União Europeia, que, em termos de Direito Internacional Público, não é um realidade convencional, é um tertium genus, uma entidade nova, consagra já, sem dúvida, uma Constituição material; tem os atributos, alguns da soberania, que tinha antes do Tratado e não tem outros que não tinha antes do Tratado.
Se falarmos no direito de fazer a guerra, ou no jus legationis, isto é, no direito de nomear representantes, no direito de celebrar tratados, verificaremos que, antes, a União Europeia já tinha o direito de celebrar tratados e o direito de nomear representantes. Mas não tem o direito de fazer a guerra, por falta de uma verdadeira política externa e de uma política de defesa comum. Portanto, aí, não há alteração, não há mudança.
Curiosamente, disse-se também que há já uma Constituição material na Europa. Sem dúvida! E aí há um passo em frente.
O conceito de «Constituição material», como sabemos, respeita, por um lado, ao estatuto do poder político e, por outro, à definição dos direitos dos cidadãos face ao Estado — é uma conquista do constitucionalismo — e, em conjunto com o Tratado de Lisboa, temos a assumpção da Carta dos Direitos Fundamentais. Portanto, nesse aspecto, trata-se de um passo em frente no sentido de uma Constituição material europeia.
Essa natureza constitucional — e é por isso que também é interessante este debate a esse propósito — e o facto de, nalguns sectores do Parlamento, quem reclama o referendo dizer «deve fazer-se o referendo porque há uma natureza verdadeiramente constitucional no novo Tratado» faz-me lembrar outros tempos, permitam-me que o diga. Faz-me lembrar os tempos em que, nesta mesma bancada, Francisco Sá Carneiro e outros reclamavam a realização de referendos sobre matérias constitucionais e eram considerados hereges por quererem realizar um referendo, quando a matéria das deliberações tinha natureza verdadeiramente constitucional.
Por isso mesmo, se me permitem, não posso deixar de fazer uma reflexão sobre alguns aspectos.
Fala-se em soberania popular, mas há aqui um conflito de soberanias.
Há quem diga que não realizar o referendo é pôr em causa a soberania dos povos na Europa. Mas será que há um povo europeu? Será que há uma soberania europeia? É que, se vamos para esse plano, então com que direito é que a soberania do povo francês, ou do holandês, ou do esloveno, ou do eslovaco, deve pôr em causa, por exemplo, a expressão da vontade da soberania do povo português? Portanto, essa composição de soberanias é algo que não está resolvido, nem no plano do direito interno nem sequer no plano do direito europeu.
Por isso, dizemos, e digo, que continuamos a considerar desejável um tratado sobre estas matérias, mas quando estiver resolvido entre todos nós, a nível pan-europeu, a nível interno também, qual a consequência para o resto da União Europeia no caso de um, ou dois, ou três dos povos da Europa dizerem «não» a esse tratado.
O que não faz sentido, à luz dos princípios da soberania, é a nossa soberania enquanto povo, se dissermos «sim» ou se dissermos «não», ser posta em causa por aquilo que resulta da expressão da vontade de outros povos.
É por isso que a cláusula do Direito — e não só do Direito — rebus sic stantibus tem aqui pleno cabimento.
Mudaram as circunstâncias.
A razão desta posição, nossa e do Presidente do partido, deve-se ao entendimento de que a Europa não pode esperar mais tempo, não pode ficar à espera de, em consequência do «não» por parte de um, ou dois, ou três Estados-membros, haver um impasse institucional, o qual — e, aqui, digo-o também ao Sr. Deputado Francisco Louçã — seria contra os interesses dos povos da Europa. E porquê? Porque não podemos esperar mais tempo para acertar as regras institucionais que hão-de reger uma Europa a 27 mas que ainda está a funcionar com as que vigoravam quando era uma Europa a 15. A questão é esta.
É evidente que o novo Tratado consagra regras que conferem poderes de decisão maioritária aos órgãos da União Europeia, poderes esses que nem sequer entram em vigor desde já. Mas não é pelo facto de alguns órgãos da União poderem decidir por maioria que há aqui uma verdadeira alteração de natureza jurídica da União Europeia.
Para nós, decidindo com responsabilidade, o que aqui está em causa é que, em 2004 e em 2005, era desejável realizar um referendo entre todos — a Europa tinha tempo, era justificável, no plano da legitimidade