I SÉRIE — NÚMERO 1
8
Bem sabemos que o modo como hoje se constitui a personalidade de uma pessoa, de dado grupo, de uma
sociedade nacional ou de sociedades globais é muito determinado por fenómenos comunicacionais. Bem
sabemos também que as sucessivas revoluções das tecnologias de comunicação, que se juntaram ao livro
impresso e aos jornais e revistas em papel, como o telégrafo, a rádio, o telefone, a televisão, o computador em
rede através de ligações com cabos e, mais recentemente, os modos portáteis de comunicação, através de
computadores portáteis, tablets ou smartphones, por exemplo, alteraram dramaticamente o modo como
pensamos, como sentimos e como conhecemos, como nos representamos a nós próprios, como
representamos os outros ou como aderimos às dinâmicas sociais.
As formas de fazer política mudaram com as revoluções tecnológicas, tais como as formas de educar, de
produzir e de difundir a cultura e a ciência. Os dois mediadores globais desta circunstância atual são, por um
lado, as tecnologias de informação e, por outro lado, os sistemas de mercado.
Portugal é um dos países do mundo que mais aderiram às novas tecnologias de informação, no quadro de
uma economia de mercado. Portugal é uma democracia que se construiu e sedimentou nos últimos 40 anos;
uma democracia que tem sofrido vicissitudes económicas graves, com três situações de quase bancarrota na
nossa história recente — no fim dos anos 70 e nos anos 80 do século passado e agora, em 2011 —; uma
democracia que, apesar das dificuldades económicas e sociais, tem demonstrado uma capacidade de
cidadania e resiliência significativa, com vontade e determinação pela liberdade e pelo pluralismo.
A matéria que hoje aqui tratamos não é lateral às questões centrais da democracia, apesar da sua elevada
tecnicidade jurídica, conceptual e organizacional. A matéria que hoje aqui tratamos respeita a uma pergunta
central em democracia: quem são os proprietários dos conteúdos que todos os dias consumimos na sociedade
de informação e conhecimento? E ainda: quem ganha nas cadeias de valor da criação de conteúdos e quem
perde? Muitos cidadãos e cidadãs dirão simplesmente: essa questão não me interessa, não quero saber disso,
desde que tenha acesso aos conteúdos.
Ora, esta é a questão crítica atrás da questão, estas são as perguntas que todos temos de saber formular:
quais os conteúdos a que temos acesso? Quem é que nos permite o acesso aos conteúdos? Como é que se
organizam os dispositivos que nos dão acesso aos conteúdos?
As indústrias da tecnologia de informação são hoje das maiores indústrias do mundo. Temos de agradecer
a todos os empreendedores que ao longo das últimas décadas ajudaram a transformar o mundo em termos
comunicacionais, democratizando o acesso à comunicação de conteúdos. Porém, não sejamos ingénuos ao
ponto de confundir liberdade de acesso a conteúdos com liberdade de aceder a todos os conteúdos que
desejamos e nas condições que queremos. Primeiro, porque é materialmente impossível a cada um de nós,
hoje, aceder a todos os conteúdos disponíveis; depois, porque, por exemplo, a maior parte de nós se deixa
condicionar por modas e efeitos comunicacionais de massa; e, ainda, porque a liberdade de acesso não
demonstra por si, como vemos pela situação do mundo atual, que a sociedade está mais livre e mais justa só
porque temos acesso a mais informação e conhecimento ou por causa do modelo tecnológico de informação
que hoje existe.
Atualmente, as sociedades nacionais e internacionais, a vida nas cidades, nos grupos e nas famílias é
diferente, é mais complexa. A liberdade de acesso não é nenhuma fórmula mágica que resolva questões
sociais, económicas, éticas e morais. A liberdade de acesso deve fazer parte de um modelo de sociedade em
que os criadores de conteúdos tenham direitos a proteger e serem reconhecidos na cadeia de valor
económico.
A cópia privada — o assunto mais debatido nos últimos tempos de entre aqueles que são abordados nos
documentos hoje aqui apresentados — não é, apesar de alguns quererem fazer passar essa ideia, uma
originalidade portuguesa. De facto, 22 países da União Europeia utilizam o mesmo modelo que Portugal
adotou em 1998 e que a Alemanha utiliza há 50 anos, modelo sobre o qual recaiu uma diretiva europeia em
2001, que teve uma atualização em 2004 e que tem, neste momento, uma proposta de segunda atualização.
Nenhuma área política, nenhuma força daquilo a que tradicionalmente se chama direita, centro ou
esquerda pode ignorar a complexidade desta matéria, os desafios que ela representa e a necessidade de
incluir a realidade digital no quadro da legislação em vigor. Esta complexidade exige posições e decisões
sobre a propriedade dos conteúdos, sobre os modelos de acesso aos conteúdos e sobre a distribuição de
conteúdos. A pluralidade democrática, a liberdade de acesso é garantida, e só garantida, se houver
pluralidade na liberdade de criação de conteúdos.