I SÉRIE — NÚMERO 59
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É também por isso que entendemos que a transparência que deve nortear a gestão da coisa pública e,
sobretudo, a responsabilização das pessoas que têm essa missão perante os cidadãos exigem, a nosso ver, a
criminalização do enriquecimento ilícito.
Naturalmente que esta criminalização deve ser feita no respeito pelas garantias constitucionais, tanto a
nível penal, como a nível processual penal, a começar pela presunção da inocência e tudo o que ela
pressupõe, desde logo, o ónus da prova, que tem, obviamente, de recair sobre o Ministério Público.
Ora, a nosso ver, as iniciativas hoje em discussão, como, aliás, outras no passado, não procedem a
qualquer inversão do ónus da prova e, portanto, pretendem promover o enriquecimento injustificado a crime,
respeitando as garantias constitucionais.
Bem sabemos que o texto aqui aprovado em 2012, também com os votos favoráveis do Grupo Parlamentar
do Partido Ecologista «Os Verdes», acabou por ser declarado inconstitucional, apesar de entendermos que,
nessa proposta, era ao Ministério Público que, no âmbito dos seus poderes de investigação, competia fazer
prova da desproporção entre o património e os rendimentos normais que decorrem do exercício de
determinada função e se essa desproporção fosse obtida de forma lícita, estaria obviamente excluída a
ilicitude. Não havia, portanto, a nosso ver, inversão do ónus da prova.
Não foi, porém, esse o entendimento do Tribunal Constitucional, que, naturalmente, Os Verdes respeitam.
Ora, nas propostas hoje em causa, os proponentes apresentam soluções que procuram — uns mais do que
outros, é verdade — dissipar quaisquer reservas de natureza constitucional.
No projeto de lei do PSD/CDS — que, a nosso ver, é o único que poderá apresentar um mínimo risco
quanto à sua conformidade constitucional — não só se procura promover uma melhor e mais detalhada
identificação dos bens jurídicos tutelados, como se caracteriza ainda com maior precisão o comportamento
censurado, para além de se reforçar a garantia de que a prova dos elementos do crime compete
exclusivamente ao Ministério Público.
No projeto de lei do PCP, o valor jurídico-penal que se pretende tutelar acaba por ser a transparência da
aquisição de património ou de rendimentos de valor elevado, estabelecendo-se não só o dever da sua
declaração às finanças, como ainda o dever de declarar a origem desse acréscimo anormal de património. Ou
seja, o acréscimo patrimonial não constitui de per si qualquer presunção de ilicitude. Neste projeto de lei, o que
se sanciona como ilícito é a falta de declaração ou da indicação da origem desse património, que, quando e se
corrigido, dispensa a pena.
No caso do projeto de lei do BE — e ainda que, a nosso ver, não se tipifique propriamente o
enriquecimento injustificado como crime —, sempre que houver uma disparidade suscetível de ser enquadrada
como enriquecimento injustificado, torna-se necessário justificar a origem daquele enriquecimento, sob pena
de o enriquecimento injustificado vir a ser tributado a uma taxa de 100%, para além de se prever uma
agravação da pena nos casos em que se provar que houve falsas declarações ou omissão de informações
relativas aos esclarecimentos sobre enriquecimento injustificado.
Estamos, assim, perante soluções que afastam quaisquer reservas do ponto de vista da constitucionalidade
deste importante instrumento no combate à corrupção, que é o enriquecimento injustificado.
Cai, assim, por terra, estamos em crer, o único argumento de todos quantos, no passado, se opuseram à
tipificação do enriquecimento ilícito como crime.
Estamos, portanto, em condições de dar um passo importante para moralizar a gestão da coisa pública,
para tornar a nossa democracia mais transparente, para responsabilizar ainda mais as pessoas que têm a
missão de gerir e tomar conta daquilo que é de todos, mas também para ir ao encontro de um sentimento
generalizado nos portugueses, onde reina o desânimo e o desacreditar, perante a impunidade com que, tantas
vezes, vão assistindo ao enriquecimento «estranho» de pessoas que exercem funções públicas.
Mas estamos ainda em condições de avançar no sentido de dar resposta a compromissos que o Estado
português assumiu no plano internacional, desde logo ao nível das Nações Unidas, através da Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção.
De facto, nessa Convenção das Nações Unidas, também conhecida como Convenção de Mérida, o Estado
português assumiu o compromisso de introduzir o crime de enriquecimento ilícito na sua arquitetura legislativa,
em matéria penal.
Recordo que essa Convenção subiu a Plenário nesta Assembleia, em junho 2007, tendo sido ratificada em
setembro do mesmo ano. E quando aqui colocada a votação para ratificação, essa importante Convenção das