I SÉRIE — NÚMERO 16
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nossas consciências não pode ter como contraponto o desespero que a imposição da nossa vontade causa ao
outro.
E aqui esbarro, recorrentemente, na ideia de que a minha liberdade termina onde começa a dos outros e
que, estando em causa direitos fundamentais, não tenho o direito de proibir aquilo que faz parte daquele
núcleo desses mesmos direitos que está para além das restrições e compressões necessárias à vida em
sociedade e que, por isso mesmo, é absolutamente inalienável e insuscetível de ingerência por terceiros.
Como dizia Francisco Sá Carneiro, a verdadeira democracia deve respeitar as convicções dos seus
cidadãos e o Estado de direito democrático deve ser o garante dessa sociedade plural, tolerante e humanista,
onde todos possam expressar e viver livremente as suas mais profundas convicções.
Estas questões têm vindo a ser amplamente discutidas nos últimos anos, com argumentos a favor e contra,
motivando defesas aguerridas e apaixonadas e nem sempre com recurso a argumentos racionais, o que não
ajuda a esclarecer os cidadãos, numa matéria que envolve tantas emoções, valores, vivências pessoais e até
a própria religião.
A complexidade e a sensibilidade da matéria em apreço exige ampla e esclarecida discussão e serenidade
na tomada de decisões.
A matéria é difícil sob vários pontos de vista e requer conhecimentos específicos em várias áreas para
poder ser bem enquadrada.
Portugal é uma República laica, pelo que a abordagem tem de ser feita, naturalmente, expurgada de
quaisquer conceções religiosas, sejam elas quais forem, e as decisões têm de ser tomadas em obediência a
uma análise objetivamente racional.
Por isso, a Assembleia da República é a sede própria para ser discutida e trabalhada a matéria referente à
despenalização da morte medicamente assistida, quer enquanto opção de legislação sobre política criminal
quer, e sobretudo, porque a Assembleia da República tem total legitimidade democrática para o fazer. É
composta pelos Deputados eleitos pelos portugueses num sistema de democracia representativa, que espelha
as múltiplas sensibilidades da nossa população.
Tem ainda o acervo coligido no âmbito das anteriores discussões sobre a eutanásia, com audições e
pareceres das várias entidades e personalidades que foram ouvidas, o que é uma mais-valia preciosa.
Por outro lado, na era digital, onde impera a desinformação e a manipulação de opiniões, o referendo
aparece cada vez mais como uma arma de arremesso contra a democracia do que como verdadeiro e
esclarecido instrumento de participação direta.
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Muito bem!
A Sr.ª Mónica Quintela (PSD): — E aqui não posso deixar de referir a forma hábil como está formulada a pergunta referendária constante do projeto de resolução e que é suscetível de induzir a resposta.
Julgo também que esta iniciativa de referendo teria um significado diferente se tivesse tido lugar mais cedo,
e não só agora, no decurso dos trabalhos da especialidade, correndo o risco de parecer um expediente
manifestamente dilatório.
Cumpre também referir que os projetos de lei foram aprovados na generalidade e que não houve nenhum
cataclismo ou convulsão, o que mostra que a população conviveu bem com o resultado obtido no Parlamento.
Ademais, numa matéria como esta, considero um erro gravíssimo desresponsabilizar a Assembleia da
República. A decisão tem de ser tomada e assumida pelo Parlamento e a legislação tem de ser elaborada com
o peso da assunção da responsabilidade e inerente prestação de contas aos portugueses, porque vamos
todos estar muito atentos a esta matéria e queremos e precisamos da fiscalização de toda a sociedade à
forma como irão ser executadas as leis aprovadas nesta que é a Casa da democracia.
Hoje, discute-se a iniciativa do referendo, mas deixo uma palavra para a questão material controvertida e
de apreço por todas as pessoas que se têm empenhado ativamente nesta causa. Estou convicta de que todos
estão genuinamente imbuídos do melhor espírito de cidadania e crentes que defendem a melhor solução. Mas
a vida não é preta e branca, não é «sim» ou «não»; é composta por muitas matizes, e é isso que a enriquece e
que compõe o equilíbrio da sociedade.
O ideal é que a legislação seja exemplar e que nunca, mas nunca, ninguém precise de a ela recorrer.