23 DE JULHO DE 2021
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— Acrescendo que, nessa margem de avaliação, o destinatário encontrará arrimo mais do que suficiente na
definição do que são «categorias especiais de dados pessoais» constante do Regulamento (EU) do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, constante do n.º 1 do seu artigo 9.º, onde se refere,
designadamente, que «É proibido o tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as
opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical (…)», norma que vigora
plenamente na ordem jurídica portuguesa e — como direito da União Europeia — tem um valor paramétrico
superior às normas de direito interno ordinário;
— Portanto, sendo o escopo confessado da maioria de aprovação alcançar uma obrigação declarativa em
relação a associações ditas de natureza discreta, na medida da afiliação deste tipo de associações ao conceito
de «convicção filosófica» e dado ainda, e não menos relevantemente, a proteção constitucional da liberdade de
consciência, enunciada como inviolável, a par da liberdade de religião e de culto [n.º 1 do artigo 41.º da
Constituição da República Portuguesa (CRP)], fica evidente a improficiência da norma para alcançar o objetivo
pretendido;
— Ora, feita esta delimitação negativa do alcance da norma em causa, o que dela resta é uma obrigação
declarativa de pertença a associações, as mais diversas, que, pela natureza do seu objeto, não impliquem a
«revelação de dados constitucionalmente protegidos». Obrigação de declaração da simples pertença, sublinhe-
se, além da eventual integração nos seus corpos sociais, o que já hoje é de declaração obrigatória, nos termos
da alínea a) do n.º 3 do artigo 13.º da Lei n.º 52/2019. Pelo que, à luz do princípio da proporcionalidade, desde
logo na dimensão da necessidade do novo dever para garantir o princípio da transparência, dele resulta um
manifesto excesso que, aliás, não deixa de comprometer os fundamentos constitucionais da liberdade de
associação «sem interferência de entidades públicas» (artigo 46.º da CRP);
— E, como se tudo o já referido não bastasse, o decreto em causa opta ainda por um regime gradativo de
entrada em vigor da obrigação declaratória (artigo 4.º) em termos tais que implicam um verdadeiro plano de
desigualdade de deveres jurídicos entre titulares em funções e entre estes e aqueles que as venham a terminar.
Razão acrescida para sublinhar a inconsistência completa de uma má solução legislativa, mero produto de um
certo «espírito da época» que confunde a exigibilidade de um saudável princípio da transparência, garantia do
exercício independente dos cargos públicos, com delírios panóticos de voyeurismo e de fiscalização invasiva da
esfera privada e do reduto da consciência individual, típicas das ideologias filiadas no papel do «grande irmão»,
esse vigilante totalitário dos comportamentos e das mentes, ativo promotor do pensamento único e, no limite,
do pensamento nulo.
Não é — nunca foi — com soluções de policiamento do pensamento e das convicções — religiosas,
filosóficas, políticas — que se construiu um corpo político conforme com os valores da liberdade. O perigo está,
precisamente, em deixar que as tentativas de normalização, invocadas em nome de um suposto interesse
público, se transformem, com o tempo, em dogmas de pensamento único que, em lugar de enriquecer a
democracia, sobretudo a debilitam ao excluir cada vez mais pessoas da motivação pelo exercício da ação
política, sujeita a priori da suspeita — qualquer suspeita que sirva para apontar o dedo e garantir: «se não foste
tu, foi o teu pai» ou, talvez, «mesmo que não tenhas sido tu, ao estares lá, de algum modo hás de estar
comprometido» e, como tal, serás sempre suspeito por natureza, seja qual for a conduta.
É um caminho que está a fazer escola, mas é um caminho que rejeito. Veementemente.
O Deputado do PS, Jorge Lacão.
[Recebida na Divisão de Redação em 27 de julho de 2021].
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Relativa ao texto final,apresentado pela Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados, sobreos
Projetos de Lei n.os 613/XIV/2.ª, 636/XIV/2.ª e 638/XIV/2.ª[votado na reunião plenária de 20 de julho de 2021 —
DAR I Série n.º 89 (2021-07-21)]:
Votei contra o referido diploma por considerar que o alargamento dos fundamentos para a suspensão do
mandato do Deputado corporiza um entendimento do exercício do mandato parlamentar de claro retrocesso em
relação à sua natureza representativa.