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II SÉRIE-A — NÚMERO 50

MENSAGEM DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Sr. Presidente da Assembleia da República: Excelência:

Venho, no exercício das competências que me são atribuídas pelo artigo 139.°, n.° 1, da Constituição da República, devolver, para nova apreciação dessa Assembleia, o Decreto n.° 12S7VI, que «autoriza o Governo a alterar o regime legal do direito de asilo e o estatuto do refugiado».

A matéria consignada no diploma em apreço é da maior importância e sensibilidade, sobretudo para um jovem Estado de direito democrático como Portugal, que se reencontrou há cerca de 20 anos com a liberdade e que tem bem presente na sua memória o tempo em que, para defesa do interesse nacional e dos seus ideais, muitos democratas portugueses foram obrigados a demandar países livres, onde eram reconhecidos os direitos, liberdades e garantias fundamentais, não só para defesa da sua própria integridade física e moral mas também para poderem prosseguir o combate de resistência perante a discricionariedade e a autocracia.

A história portuguesa dos últimos dois séculos apresenta-nos múltiplos exemplos de como foi decisivo o acolhimento dado a liberais e democratas por países estrangeiros, como impulso e apoio à luta pela implantação do Estado de direito. Garrett e Herculano foram exilados políticos, num tempo em que a implantação do constitucionalismo exigiu sacrifícios e a iniciativa heróica de um largo grupo de liberais sinceros, que apenas puderam fazer prevalecer a sua causa graças à solidariedade de países amigos.

Eu próprio não posso esquecer a experiência que vivi no exílio. Conheço as dificuldades de quem se vê distante dos seus, num país tantas vezes estranho. Nesses momentos, a abertura e o acolhimento revelam-se fundamentais. E não posso esquecer como foram decisivos para a causa da democracia portuguesa os apoios e a receptividade dos países que nos abriram as suas portas — e tantos foram!

Acresce que Portugal constitui, com o Brasil e com os países e povos africanos que falam o português, uma comunidade de língua e de afecto que deve ser traduzida em actos concretos de solidariedade, entre os quais não podem ser excluídos os de acolhimento em situações de perseguição política, como aconteceu, aliás, no passado, com portugueses exilados no Brasil e brasileiros em Portugal.

Temos, pois, especiais responsabilidades na ponderação de um novo regime legal sobre o direito de asilo e o estatuto de refugiado. Está na nossa memória a experiência recente e, por isso, temos de usar de generosidade e de abertura, com as cautelas necessárias, capazes de garantir na prática a solidariedade de que ontem beneficiámos e que hoje não devemos regatear.

Assim, julgo haver vantagem em que a Assembleia da República não se limite a aprovar uma autorização legislativa, mas que possa aprovar directamente o próprio diploma numa matéria de tal relevância. O Parlamento e as instituições democráticas dignificam-se e fortalecem-se se proporcionarem debates amplos sobre matérias de

grande interesse para o futuro. E não tenhamos dúvidas de que estamos perante um tema que o futuro revelará de importância muito significativa — relativamente ao qual deveremos ser extremamente exigentes e escrupulosos no cumprimento da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das recomendações do Parlamento Europeu e do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, bem como ter em conta as posições expressas pelas associações de imigrantes, pela Obra Católica das Migrações e pela secção portuguesa da Amnistia Internacional.

Não estão, obviamente, em causa as exigências de segurança da nossa população — que importa assegurar — nem o funcionamento do sistema de protecção social. O que está em causa é a conveniência de encontrar um consenso alargado numa matéria não sensível, sobretudo num momento em que deveremos contrariar e prevenir, com serenidade e firmeza e com sentido humanitário, as tentações de chauvinismo e xenofobia que se vão manifestando no velho continente. Devem criar-se, por isso, mecanismos abertos e generosos, com redução drástica das margens de discricionariedade, o que obriga a uma reflexão e a um diálogo aprofundados no quadro da Assembleia da República.

Julgo, com efeito, não estarem esgotadas as vias de diálogo no seio da Assembleia da República no sentido de se encontrarem, em matéria de tão grande significado e melindre, soluções que possam reunir um consenso amplo — que dignifiquem a democracia portuguesa e que reforcem as garantias legítimas de quem possa beneficiar do direito de asilo e do estatuto de refugiado, sem margem para ilegítimas confusões com marginais ou indivíduos com cadastro criminal ou sob fundada suspeição de perigosidade.

Entendo, porém, não dever nesta circunstância apresentar soluções concretas ou reparos específicos ao decreto que devolvo para apreciação da Assembleia, pois não desejo dificultar o caminho que julgo aberto para que se encontre um regime jurídico mais justo e adequado ao presente momento, digno do Estado de direito democrático que nos prezamos de ser.

Permito-me, no entanto, a titulo de exemplo, referir dois aspectos que se me afiguram importantes: tais são os casos da eliminação da referência ao direito de asilo por razões humanitárias (que podem ser políticas) e da diminuição das garantias fundamentais em matéria processual.

Deste modo, não podendo deixar de manifestar à Assembleia da República o grande apreço que a instituição parlamentar me merece, como centro vital da democracia e como órgão representativo por excelência do povo português, desejo suscitar uma reflexão mais ampla e aprofundada sobre o tema em apreço, de modo que a legislação que venha a entrar em vigor seja um factor positivo e humanizador de solidariedade e de tolerância, na linha do humanismo universalista de que tanto nos orgulhamos.

Assim, nos termos e para os efeitos previstos no t\? \ do artigo 139.° da Constituição da República, considero ser meu dever, pelos fundamentos expostos, devolver à Assembleia da República o Decreio n.° 128/VI para nova apreciação, tendo em conta a necessidade de aprofundar um esforço de concertação e diálogo em matéria de grande melindre e da maior importância para o fortalecimento da vida democrática.

Lisboa, 3 de Agosto de 1993. — Mário Soares.