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2 DE JULHO DE 1994

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Excluído o hiato da nova reforma penal de 1884, que poria o acento tónico nos principios ético-retributivos (22), os códigos e toda a legislação inclinam-se entre nós, desde meados do século passado, para ideias de prevenção especial (23). Ideias cuja enfatização Beleza dos Santos faria de modo muito, particular. «A acção preventiva dás penas»; advertiu, «é de alto interesse público» (w).

Mas a omissão constitucional não tem significado especial. O facto de não ter expressa referencia na Constituição não retira à «reintegração social» matriz na lei fundamental; por certo que as preocupações que subjazem ao princípio têm estreita articulação com a ordem dos valores constitucionais.

Esta realidade eclode facilmente quando se precisa o significado da reintegração social — ao qual não corresponde, na doutrina, um significado unívoco, e demanda por isso clarificação.

De facto, a reintegração social é. um conceito que se reporta à prevenção especial, mas sem. a pretensão de concretizar o exacto alcance de tal prevenção e o modo pelo qual ela poderá atingir-se.

É, pois, um conceito normativo.

A sua compatibilidade com a dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade preclude um entendimento por assim dizer maximalista da reintegração social. Ou seja: a tese de que a prisão é um benefício absoluto, pela sua vocação reeducadora e pela virtualidade de trazer o condenado à absorção dos princípios dominantes da sociedade, cai por terra. Tomar por essenciais, legitimadoras do modelo social, a liberdade de opções axiológicas e um espaço de convivialidade entre elas exclui a tese da sanção penal como escola de bem, e a da sua aplicação como virtuosismo jurídico para obter a virtude moral e social.

De facto, compete dar por adquirido que a pena estigmatiza, traz sofrimento, potencia desadaptação e é-lhè por isso inerente uma elevada dose de irracionalidade C25);

O sentido da prevenção reintegradora social é portanto outro. Tratar-se-á de tornar o objectivo de retirar da sanção o melhor efeito possível, assumida a representação maléfica com que ela surge aos olhos do condenado. Tratar-se-á de assumi-la como um mal inevitável, mas dirigido para a produção do maior número possível de efeitos úteis.

É no domínio da execução das penas que mais faciU mente se evidenciam as principais consequências da reintegração social.

E há duas nucleares. A primeira sublinha o conteúdo positivo do processo de reintegração. Este processo não terá por missão induzir o condenado a assimilar contra a sua vontade os valores e os princípios do ordenamento jurídico a que manifestou, pela actuação criminosa, não aderir. Ao condenado, como a qualquer outra pessoa, reconhece-se o direito de rejeitar esse ideário. É um direito sub-

(:¡) Cf. «Relatório da proposta de lei da nova reforma penal». Revista de Legislação e Jurisprudência, anno 18, 1885, pp. 321 e segs.

(") Sobre esta evolução histórica, cf., por todos, A. M. de Almeida Costa, Passado, Presente e Futuro da Liberdade Condicional no Direito Português, Coimbra, 1989, pp. 9 e segs.

O4) Cf. Ensaio sobre a introdução ao Direito Criminal. Coimbra, 1968. p. 153.

(l') Sobre os efeitos desviantes da pena (self-fulfding-prophecy) e sobre a estigmatização que ela comporta, cf.. por todos, Cabo del Rosal-Boix Reig., «Derechos fundamentales del condenado. Reeducación y reinserción social». Comentários a la Legislación Penal, Derecho Penal y Constitución Edersa, 1982, pp. 219 e segs.

jectivo inerente à cidadania na sociedade pluralista. O que se-pretenderá é oferecer-lhe a possibilidade de ter acesso a essa pedagogia, ou, em alternativa, de aprendera conviviera com os valores que a ordem jurídica preserva, sem pfejuízo de manter as suas próprias concepções,. Utilizando-a clássica e clarificadora dicotomia kantiana entre njçplidade e legalidade, dir-se-á que a reintegração procura conduzir o delinquente no sentido da última,, independentemente de uma efectiva adesão à primeira

Jp outro aspecto pretendido com a reintegração social durante a execução da pena tem carácter negativo. Ten-tar-se-á tanto quanto possível neutralizar os efeitos criminógenos da Sanção, que hoje sobretudo se reportam à pena de prisão (27). Usando uma síntese feliz de Cobo déf Rosal-Boix Reig, dir-se-á que o condenado tem o «direito fundamental de exigir do Estado [...] que as penas privativas da liberdade se cumpram de modo a que nãóse fruste aquele direito a reincorporar-se dignamente na! sociedade uma vez cumprida a pena» (2"). O Estado democrático tem assim em conta a participação da pessoa, do condenado,' no processo sancionatório. '■ -A reintegração social é também importante na determinação da medida da pena. Dé facto, não é credível que um sistema penal oriente a execução da pena com objectivos preventistas^ se eles não estiverem já presentes no momento da definição da própria sanção.

A reforma compatibiliza-se com estes referentes constitucionais da reintegração social, por isso que:

1.° Não a concebendo, como ficou visto, como um bem absoluto, porque como tal colidente com o direito à liberdade e com pressupostos da sociedade aberta, prejudica qualquer ancoramento seu numa «ideologia do tratamento» (Jy), ou mesmo • numa tese de evolução positiva da sociedade exclusivamente .através de um direito «pedagógico» C0);-

2." Pressupõe, contudo, uma valoração positiva da .. ■:• sociedade no seu conjunto, pois só esta legitima um qualquer propósito reintegrador. E por isso . aparta-se das teses segundo as quais a sanção penal.ganha alcance na sociedade presente apenas num .contexto de estratégia de direcciona-mento político para um modelo social alternativo ao vigente.'

- 3.° Não tem subjacente um programa de .assimilação pelo condenado dos valores ético-culturais dominantes;

4.° Reconhece o direito à diferença como único coe-. rente com a sociedade aberta;

(M) Neste sentido, cf., por todos, Abin Eser, que afirma: «A execução da pena náo pode orientar-sé no sentido dc modificar a personalidade ou as convicções do condenado», c conclui: «Na ideia dc resso-cializaçào de adultos não cabe mais do que uma chamada à manutenção da legalidade sem ulteriores exigências morais.» (Resnziatisierung in der Krise? Gedanken zum Sozialisalionsziel.des Strajvollzugs. Festschrift fur Karl Peters. 1974, pp. 509-511.)

.(") O modo de cumprimento da pena de multa e as alternativas que a lei lhe admitia, e, sobretudo, os pressupostos da sua aplicação esbatem fortemente os seus virtuais efeitos criminógenos.

(») Cf. op. cit., p. 222.

(B.) O chamado «tratamento social pedagógico» tem no seu étimo um perfil criminal eminentemente patológico, que hoje começa a ser objecto-de críticas sistemáticas.

(w) Tese desenvolvida por Luderssen, e segundo a qual o direito penal «concreto».será o Direito de uma sociedade capaz de aulocontrolar e dirigir, o seu próprio processo de mudança (Plannungsrecht) (cf. Handbuch zur Rechlswissenscluift. 1972. pp. 474 e segs.)