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II SÉRIE-A — NÚMERO 59

PROJECTO DE REVISÃO CONSTITUCIONAL N.e 14/VI

Exposição de motivos

1. Ao assumir poderes constituintes o legislador move--se num paradigma temporal diverso do habitual, não estando limitado por horizontes temporais de legislatura e não tendo directamente a ver com maiorias concretas de Governo.

Ao exercer o poder constituinte o legislador responde directamente perante o povo soberano e deve ter sobretudo presentes os valores e realidades que são permanentes, que são expressão da identidade e da individualidade própria desse mesmo povo. Deve, por isso, identificar os referidos valores e assegurar a sua consagração e protecção.

Na verdade, uma Constituição só é boa e proporcionada para um povo quando procura identificar os seus valores e individualidade própria. É que, como bem sublinhou Paulo VI (in Populorum Progressio, n.° 40), «rico ou pobre, cada país possui uma civilização recebida dos antepassados, instituições exigidas para a vida terrestre e manifestações superiores — artísticas, intelectuais e religiosas — da vida do espírito. Quando estas últimas possuem verdadeiros valores humanos, grande erro é sacrificá-las àquelas. Um povo que nisso consentisse perderia o melhor de si mesmo, sacrificaria, julgando encontrar vida, a razão da sua própria vida».

Isto não contraria, antes pressupõe (visto a cultura não ser algo de estático, mas dinâmico), a necessidade de os países evoluírem pela gradual e sucessiva integração de novos valores autênticos que actualizem e enriqueçam os anteriormente adquiridos, como já se sublinhava em 1981, na nota do Conselho Permanente do Episcopado a propósito da revisão constitucional.

Além disso, há que sublinhar que a política é também antecipação. Não consiste apenas em dar resposta a desafios temporalmente limitados mas sim em, descobrindo o que é permanente, antecipar a evolução previsível e as questões de futuro, sem cair na pura futurologia. Mas a política tem de se colocar também na fronteira entre a realidade e o sonho, poderoso mobilizador da humanidade — e que «comanda a vida», segundo António Gedeão—, procurando criar condições para que as esperanças e aspirações longínquas das pessoas se possam vir um dia a realizar.

Se assistimos hoje à realização progressiva, ainda que parcial, dos sonhos de Martin Luther King e de Francisco Sá Carneiro, foi porque eles souberam antecipar genialmente as aspirações e as esperanças dos seus povos, abrindo, com coragem e risco, os caminhos para a conseguir.

2. A Constituição de 1976 era, na sua versão original e mau grado o excelente trabalho de muitos Deputados constituintes, passadista nalguns aspectos, eivada de uma ideologia crepuscular decadente, distante dos valores, sentimentos e aspirações da grande maioria dos portugueses e sobrepondo à legitimidade democrática a «legitimidade» revolucionária de um órgão não eleito. O Estado adoptava uma ideologia transpersonalista e limitava fortemente diversos direitos da pessoa humana.

Daí as reservas constantes da declaração de voto proferida pelo Sr. Deputado Barbosa de Melo em nome do PPD/PSD. Por mim, defendi, com Sá Carneiro, a própria abstenção na votação final pelas razões apontadas.

Em 1982, foi possível consagrar a supremacia da legitimidade democrática e, em 1989, atacaram-se e desfizeram--se os mitos das sociedades terminais, das «irrever-sibilidades», afinal muito passageiras, consagrando-se um modelo aberto e que permitia já a aplicação livre dos programas escolhidos pelos Portugueses. Foi mesmo possível consagrar alguns valores, mas mantiveram-se ainda muitas fórmulas ultrapassadas e ficou ainda expressa a intenção de reduzir o mais possível a política a uma questão meramente técnica (técnico-jurídica ou técnicc--económica): a boa construção das instituições e o funcionamento da economia.

Como referi na minha declaração de voto, aquando da votação final verificada em 1 de Junho de 1989, a Constituição continua a conter bastantes preceitos recheados de mitos positivistas e tecnocráticos, embora agora tenham de ser interpretados à luz do primado da pessoa humana e dos valores consagrados no artigo 1."

Entendo que há que prosseguir no caminho então encetado para que a política também entre nós deixe de ser considerada como ciência, conjunto de princípios estabelecidos e verificados «cientificamente» por homens competentes e para que os juízos de valor, que quer o positivismo quer a ideologia tecnocrática desprezam, se afirmem cada vez mais como essenciais para fundamentar a acção política a desenvolver com base no pensamento político renascido.

Há que ultrapassar o impasse a que o positivismo conduziu a política, dados a sua pretensa neutralidade axiológica, o seu «cientismo» que pretendia conhecer «as leis sociais», a sua análise redutora da realidade.

Mas há que ultrapassar igualmente o pragmatismo tecno-economicista, virado para os aspectos quantitativos e que ignora a diversidade muJtidimensional da realidade humana. Com efeito, a acção tecnocrata é social e politicamente mutilada e mutiladora, pois concebe o que é vivo — homem e sociedade — segundo a lógica simplificadora das máquinas artificiais, por isso se enganando por ignorar as aspirações qualitativas das pessoas.

Este «cientismo» comum ao marxismo, ao positivismo e à tecnocracia limitou abusivamente o campo do possível e do concebível. Todos eles propuseram um fundamento elitista, em vez de democrático, para o poder, utilizando «a ciência e a técnica como ideologia», na expressão de Jürgen Habermas e definindo a élite em termos de competência. Só que, como bem notou Francisco Sarsfield Cabral, a política é e será sempre irredutível a critérios científicos: o critério de acção política não é a ciência nem a competência, mas, sim, a prudentia, que propõe aos homens que se desenvolvam em liberdade, conciliando a eficácia com a justiça e a solidariedade.

3. Outro dos motivos que justificam a apresentação deste projecto de revisão é a necessidade de acentuar que o Estado, em geral, e o chamado «país político», em particular, devem abandonar a postura de querer outorgar