9 DE NOVEMBRO DE 1996
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No conflito entre a vida e a liberdade que o aborto encarna, será talvez mais honesto admitir que a nossa civilização não foi capaz de reconciliar os dois valores com absoluta consistência em todas as escolhas que fazemos.
Sendo o aborto intrinsecamente um mal, urge, no entanto, alterar a actual situação portuguesa.
Portugal, à excepção da Irlanda, é o país da Europa comunitária com uma legislação mais restritiva no referente à interrupção voluntária da gravidez (IVG), o que poderá estar na origem da assustadora taxa de IVG ilegais que se praticam no nosso país.
O aborto clandestino e inseguro continua a ser um dos mais graves problemas de saúde reprodutiva das mulheres portuguesas. Com efeito, segundo o Instituto Nacional de Estatística a prática do aborto constitui a segunda causa de morte materna e é responsável por inúmeros atendimentos e internamentos nos hospitais portugueses.
Ciente desta situação, a Juventude Socialista defende, ab initio, uma legislação adequada à realidade actual numa linha de defesa dos direitos fundamentais da mulher, preconizando a implementação de um quadro legal «pró--vida» e não «pró-hipocrisia».
Os estudos realizados sobre a prática de aborto pelas mulheres portuguesas confirmam que uma percentagem elevada de mulheres fez um ou mais abortos ao longo da sua vida, como resultado de gravidezes não desejadas. Destas, cerca- de 50% fizeram mais do que um aborto.
Segundo as mais recentes estimativas, calcula-se que são praticados no nosso país cerca de 16 000 abortos ilegais, feitos muitas vezes em condições higiénicas e sanitárias deploráveis.
Para além das complicações trágicas, como a morte da mulher ou intervenções cirúrgicas por perfuração uterina, infecções ou hemorragias graves, outras sequelas passam despercebidas no pós-aborto imediato, mas podem marcar o futuro reprodutivo das mulheres — é o caso das infecções subclínicas que originam obstrução das trompas e mais tarde infertilidade ou risco de gravidez extra-uterina.
O quadro legal português, embora tenha sofrido um avanço significativo com a Lei n.° 6/84, de 11 de Maio, que veio consagrar a exclusão da ilicitude nas situações de aborto terapêutico, eugénico e ético, e, posteriormente, com as alterações operadas pela revisão do Código Penal através do Decreto-Lei n.° 48/95, de 15 de Março, é revelador, ainda, da existência de muitas lacunas e imperfeições, que se acentuaram devido à falta de regulamentação da Lei n.° 6/84.
A Comissão de Revisão do Código Penal (CRCP) propôs, em 1994, o prazo de 22 semanas no tocante à interrupção da gravidez nos casos designados de aborto eugénico.
Porém, não foi esse o entendimento governamental, dado que a proposta de lei n.° 927VI retomou o período de 16 semanas de gravidez, já constante da Lei n.° 6/84. Aquando desta últíma revisão do Código Penal foi evitada, pela então maioria, qualquer correcção ou revisão da lei, mesmo aquela que se referia aos erros técnicos flagrantes que a Lei n.° 6/84 contém (inadaptação dos prazos de IVG por malformação do feto aos prazos necessários para que tais malformações sejam detectadas). °
A proposta da CRCP afigurava-se mais equilibrada e até de harmonia com as soluções da Alemanha e da Espanha. Apontaram-se mesmo soluções mais permissivas nos casos da Dinamarca, França, Grécia, Luxemburgo e Inglaterra, que despenalizaram o aborto eugénico até às 25.* ou 28.° semanas.
O direito comparado das legislações existentes na União Europeia situa a legislação portuguesa nas legislações menos abrangentes, quer no referente aos motivos quer em relação aos prazos para a IVG. Em particular, os prazos para uma IVG nos casos de malformação do feto são muitas vezes impraticáveis face ao tempo de gravidez exigido legalmente, o qual não permite claramente a comprovação daquele facto.
Assim, em termos de legislação comparada, podemos constatar que na Dinamarca, França e Grécia é permitida a IVG a simples pedido da mulher, sem invocação de motivos, até às 12 semanas.
Por outro lado, assiste-se, desde a década de 70, à despenalização da IVG por indicações sociais na Dinamarca, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Inglaterra, oscilando os prazos entre as 12.° e 28." semanas.
A Holanda e a Bélgica incluem, ainda, no seu ordenamento jurídico a possibilidade de prática de IVG por situação intolerável ou por angústia até às 12.° e 24.° semanas, respectivamente.
Acresce que a taxa de aborto diminuiu consideravelmente nos países em que o mesmo foi inserido e tratado em programas de planeamento familiar, sustentados por serviços de saúde adequados e eficazes e acompanhados de informação e formação nesta área.
A resposta hospitalar aos pedidos de IVG revela que a IVG legal ocupa uma dimensão diminuta no conjunto das IVG realizadas em Portugal, devido, por um lado, às restrições legais e, por outro, às dificuldades institucionais na aplicação do quadro legal, das quais sobressai a inexistência de critérios bem definidos e de serviços apropriados, bem como a objecção de consciência. ' Feito o diagnóstico da aplicação da Lei n.° 6/84, constata-se que a mesma se caracterizou por grandes falhas na sua implementação e pela disparidade de critérios na sua aplicação, associada ao facto de não ter contemplado a maior parte dos motivos que levam uma mulher a interromper uma gravidez que não desejou (motivos emocionais, erros técnicos, falhas dos métodos contraceptivos e da sua utilização, impossibilidade por motivos económicos, habitacionais) e que condicionam uma mulher ou o casal a decidir de forma irreversível e sempre penosa, que não quer ou não pode, naquele momento, levar até ao seu término aquela gravidez.
A realidade é visível: milhares e milhares de mulheres portuguesas continuam a recorrer ao circuito do aborto ilegal. Por isso, entendemos que a lei vigente deverá ser corrigida, quer nos seus erros técnicos quer na sua abrangência, e, à semelhança das leis existentes nos demais países da União Europeia, que a IVG possa ser feita até à 12.* semana a pedido da mulher, por motivos ligados à defesa da sua própria liberdade pessoal em matéria de maternidade ou à defesa da sua dignidade moral ou social.
Na verdade, «todos os indivíduos têm o direito de ser livres, tendo em conta os direitos dos outros, para usufruir e controlar a sua vida sexual e reprodutiva» (in Carta sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos, de 1995).
As últimas conferências internacionais que se debruçaram sobre o tema do aborto, nomeadamente as Conferências de Tbilissi (1990), Cairo (1994) e Pequim (1995), adoptaram conclusões similares, ou seja, que «o aborto ilegal é um problema de saúde pública que afecta milhões de mulheres em todo o mundo».
Os Deputados da Juventude Socialista e outros do PS, em estreita coerência com os seus princípios e após auscultação das principais organizações especializadas